Osvaldo Júnior: O que não é ‘exitoso’ em Educação?

Não se pode, portanto, aceitar somente como ‘nossos’ os erros que afetam o campo educacional. Aquilo que não é exitoso pertence a todos nós, a um sistema que necessita ser modificado.
António Nóvoa, em seus escritos e palestras, apregoa que a escola só fará sentido se for diferente da sociedade. Foto: Freepik

Nada sei dessa vida
Vivo sem saber
Nunca soube, nada saberei
Sigo sem saber

 Que lugar me pertence
Que eu possa abandonar
Que lugar me contém
Que possa me parar

 Sou errada, sou errante
Sempre na estrada, sempre distante
Vou errando enquanto o tempo me deixar
Errando enquanto o tempo me deixar […].

 Kid Abelha

 

Recordo-me da fase pueril quando, no rádio, um hábito ainda mantido por minha mãe e meu pai, a fim de espantar a temida solidão, escutava a voz de Paula Toller lançar versos sobre um eu lírico que mantinha uma relação idílica com algo ‘condenado’ no dia a dia: o erro. À época, não entendia essa relação simbiótica com algo que, não raro, costuma nos deixar taciturnos e, por vezes, pode nos levar a ser expulsos de uma instituição ou, até mesmo, demitidos. Infelizmente, ainda existem lugares que não toleram atitudes em desconformidade com o planejado. Não há segundas ou terceiras chances para agir.

Já bem mais maduro, por sugestão de Marcia Tiburi, lembro-me que li As virtudes do fracasso, escrito por Charles Pépin, e passei a nutrir uma outra percepção sobre os erros que costumamos, (in)voluntariamente, cometer. Alguns, por vezes transformamos em risos e contamos para amigos/as e familiares em momentos de lazer. Outros, transferimos nos baús do subconsciente e não queremos que ninguém saiba. Pensamos até que o onisciente Divino não lembra daquele ‘vacilo’ que custou nossa paz e alegria cotidianas.

Em contextos educacionais, talvez um dos fatos mais comuns sejam os erros, mas ainda costumam receber (in)tensos estigmas, como se não fizessem parte dos percursos formativos e necessitassem, a todo custo, ser alijados. O famoso adágio ‘errar é humano’ parece que perde todo o sentido semiótico diante das exigências de um sistema que concebe primazia aos que chegam ao topo e condenam às margens aqueles/as que não alcançam as ‘metas’.

Alfabetizar é exitoso. Estimular uma criança a ler é exitoso. Provocar a curiosidade epistemológica, de igual modo, é exitoso. Foto: internet

Outros/as escritores/as já pontuaram o caos que seria se fôssemos todos/as perfeitos/as. Não por acaso, fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Por isso, costumamos não acertar e, assim, aprender, refletir, fazer de novo, consertar o que necessita angariar novas dimensões, ou até mesmo mantermos a inércia. Tudo pode variar.

Fico bastante triste quando as escolas, os/as professores e demais sujeitos que laboram no campo da educação, se rendem aos ditames do neoliberalismo, abraçando causas que, ao fim e ao cabo, buscam culpabilizá-los/as por questões que estão muito distantes de suas ações político-pedagógicas.

Nesse sentido, a ideia de ‘vencer a todo custo’ vem invadindo as salas de aula, o que faz as vivências e a valorização do processo serem suprimidas pelo paradigma que privilegia o mero produto final, ou, só para usar uma linguagem mais prática: ‘os fins justificam os meios’, desde que se alcance o que foi determinado. Nesse veio, qualquer reflexão se torna desnecessária, desde que a exigência seja adquirida e socializada em busca de atenção e aplausos externos.

Há pouco tempo, notei a realização de um evento educacional que buscava valorizar práticas exitosas entretecidas em escolas públicas. Para isso, recursos foram destinados e a mídia local mobilizada, afinal a comunidade precisava presenciar a ‘prestação de contas’, ou seja, ver quem estava ‘trabalhando de fato’, merecendo notório destaque. Por influência dos estudos curriculares que desenvolvo, passei, em um jogo crítico-dialético, a me questionar: o que não é exitoso em educação? Por que trazer à tona visões maniqueístas diante do trabalho docente?

Essa indagação ecoou em mim durante meses. Lembro que peguei o famoso livro de Maria Helena Souza Patto – A produção do fracasso escolar – em busca de uma explicação, pois só costumo escrever quando alguma ideia já está ‘organizada’ na mente e fiquei a refletir, procurando outros/as interlocutores/as que me possibilitassem fundar e esmiuçar novas ideias.

Arrisco-me a pontuar que, se dependesse apenas dos/as professores/as, a educação brasileira estaria em outro patamar. Foto: internet

Alfabetizar é exitoso. Estimular uma criança a ler é exitoso. Provocar a curiosidade epistemológica, de igual modo, é exitoso. Ademais, retirar, por meio da leitura, uma criança ou adolescente do sufoco é uma prática salutar. Seriam infinitos os exemplos a serem mencionados. Destarte, por que precisamos dessas hierarquias geradas pelo capitalismo, a fim de inserir algumas práticas na condição de ‘melhores’ do que outras, em virtude de serem valoradas por uma comissão ad hoc?

António Nóvoa, em seus escritos e palestras, apregoa que a escola só fará sentido se for diferente da sociedade. Quando esta instituição mimetiza o que está lá fora ou atende, sem pensar, as exigências exterodeterminadas, tem-se um caminho que considero perigoso, dadas os seus desdobramentos posteriores.

Não dá, em um evento educacional com tempo limitado, para apresentar o que professores/as, mesmo em condições exíguas e, por vezes, de precariedade, vêm fazendo na vida de estudantes. Por isso, erigir um clã daqueles/as que merecem mais respeito e premiação do que os/as outros/as é uma vereda neoliberal que precisa ser repensada, porquanto é como se a categoria docente atuasse na condição de ‘idiota cultural’, um conceito urdido por Harold Garfinkel, e tudo estivesse dando errado porque não há vontade pedagógica para se fazer diferente. Temos, sim, colegas de profissão que não cumprem com seus desideratos, mas isso não é regra.

Não caio mais nessas ciladas em virtude das ideias que passei a ter a partir da leitura que faço de teóricos/as vinculados/as ao campo progressista, concebendo a educação por um prisma anti-sistêmico e emancipatório. Assim, penso que seria mais viável estimular formações de contextos nos quais passássemos a problematizar: por que erramos em nossas andanças profissionais? Não atingimos objetivos por falta de formação ou em virtude do caráter acontecimental e epifânico imanente à condição humana e, portanto, educacional?

O neoliberalismo é perverso e camaleônico. Por vezes, vem travestido em um verniz democrático de premiações que só estimulam, nos contextos escolares, a famigerada meritocracia e a competição, suprimindo a ideia de trabalho colaborativo cuja heurística apresenta, de fato, poder para transformar realidades, tal como defendem os pesquisadores António Nóvoa e Francisco Imbernón em suas obras.

Fico bastante triste quando as escolas, os/as professores e demais sujeitos que laboram no campo da educação, se rendem aos ditames do neoliberalismo, abraçando causas que, ao fim e ao cabo, buscam culpabilizá-los/as por questões que estão muito distantes de suas ações político-pedagógicas. Foto: Freepik

Por vezes, costumo ‘brincar’ em palestras que medeio, informando que não precisamos de medicamentos quando surgir o sentimento de impotência diante de algumas situações, pois, quando errarmos, se estivermos juntos, de mãos dadas, verdadeiramente, não haverá críticas inquisitoriais, mas o desejo coletivo de fazer tudo de novo, de forma diferente e, mesmo que nada ainda dê certo, ficarmos juntos para reunir os cacos, como bem sinalizou o eminente Rubem Alves.

Não se pode, portanto, aceitar somente como ‘nossos’ os erros que afetam o campo educacional. Aquilo que não é exitoso pertence a todos nós, a um sistema que necessita ser modificado. Arrisco-me a pontuar que, se dependesse apenas dos/as professores/as, a educação brasileira estaria em outro patamar. Os casos pontuais de negligência não podem gerar uma névoa que impeça a sociedade de ver ações cotidianas construídas diante do que se tem, em busca de uma vida diferente, ao menos no plano fecundo do simbólico, capaz de refazer rotas existenciais.

Ainda bem que Paula Toller, por meio de seus versos, desenvolveu um lenitivo para nós, educadores/as: vamos sair do tom enquanto o tempo nos deixar. E está tudo bem. Sem condenação. Sem corrida por um prêmio. Sem julgamentos. Sem provas. Diante das itinerrâncias, que possamos ler ou ouvir poesias. Afinal, não seriam os versos uma forma de amenizar os efeitos dos erros que produzimos? E o fracasso, o que seria? Por sorte, outro poeta ponderou que “parece nome de perfume, daqueles ocres vagabundos”.

PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.

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