Quando nos perguntamos como é possível que, em pleno século 21, em uma época em que o acesso à informação é cada vez mais difundido, quando atingimos um estágio cultural – inclusive com a tecnologia digital – tão impressionante, as pessoas falem tantas bobagens, estamos diante do tema da semicultura.
Marcia Tiburi, no texto “Educação meia boca [2017]”
Nos últimos tempos, venho exercitando um hábito para muitos/as esdrúxulo: escrever em meio ao intenso cansaço, tentando, ao máximo, evitar que a rotina desgastante de uma semana de aulas atrapalhe o pensar fecundo e acurado em torno de um tema que me “perturba” desde que se tornaram polêmicas as falas de MC Pipokinha em torno do Magistério e de seu trabalho na condição de “influenciadora digital”. Nem a conhecia e fiquei a pensar nos descalabros propalados pela mídia hegemônica e em outras tantas questões que nos tocam enquanto profissionais de um dos ramos mais difíceis de se exercer: a educação, já combalida em meio a problemas históricos, os quais se maximizam com o uso, em nada ético e proveitoso, das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação.
Sou professor da Educação Básica da área de Linguagens, a qual lida, como matéria-prima, com textos em meio aos seus múltiplos cenários de produção e circulação. Quem mexe com a palavra elaborada sabe o quanto ficou difícil trabalhar depois da evolução de dispositivos que levam as pessoas à burrice e à idiotização, embora reconheça que possam ser úteis em inúmeras atividades cotidianas.
Pesa em meu cotidiano ver estudantes plugados ao celular como se fossem guias de vida. De vários alunos com os quais convivo, só tenho em mente uma única imagem: aquela com os dedos a movimentar-se para cima e para baixo ou para os lados. E o pior: verificando redes sociais que “tomam” nosso precioso tempo, moldando nossa subjetividade e, não raro, levando-nos a crises de ansiedade e depressão, pois, nos cenários do espetáculo, a vida dos outros é quase sempre permeada pelo hedonismo, pela abundância e ausência de problemas. Há a primazia do riso, da ostentação, do companheirismo, da cumplicidade, nuances que costumam durar, às vezes, o tempo inferior a um orgasmo. Não obstante, no cotidiano, pairam o individualismo, a meritocracia e uma miríade de preconceitos e emoções negativas que parecem insolúveis à medida que se multiplicam exponencialmente.
O que estamos fazendo conosco? O que estamos fazendo uns com os outros? Estas foram algumas perguntas levantadas por Marcia Tiburi no seu livro Filosofia prática, convidando leitores/as a pensar em nossas ações cotidianas urdidas em mundos reais e virtuais, já que, hoje, somos impelidos a ter duas vidas concomitantes.
Na escola, é comum verificar a parca concentração dos/as educandos/as. Geralmente, costumam desprezar práticas de leitura e escrita, caminhos lídimos de emancipação em seus múltiplos vieses. Nesse veio, pouco se comunica e pouco se constrói. O adjetivo “chato” está, também, cada vez mais sendo usado para se referir aqueles/as que ainda acreditam no poder, enquanto verbo nocional, que há em meio ao quantum de saberes historicamente acumulados.
Fico também me perguntando como construir, com essa geração, a famigerada competência digital. Ouço relatos de consultores/as de que é preciso atrair esses/essas estudantes por meio de aplicativos. Como associar aulas de Filosofia, por exemplo, que exigem densidade, exegese e (meta)reflexão a redes sociais líquidas que não comportam e não abrem margem para um pensamento elaborado e crítico, porquanto isso deslegitima o próprio modus operandi desses gadgets criados para proliferar uma cultura da excitação que gera desatenção, consoante Christoph Türcke.
Digo a muitos/as alunos/as que nunca tive TikTok. Eles/as ficam estupefatos/as, mas também afirmo que esta rede social tem funcionado, para muitos/as, como uma espécie de antidepressivo. As pessoas, em suas solidões e imersas em frustrações que pouco conseguem administrar, precisam ver, mimetizar e se sentir pertencentes a uma legião que vibra e ri com cenas bizarras, por vezes assaz preconceituosas e ridículas. O riso virou ouro em uma sociedade que consome inibidores seletivos de recaptação de serotonina em níveis exponenciais.
Vejo muitos/as colegas de escolas particulares serem obrigados/as a postar vídeos no TikTok como forma de se manter conectados/as a um emprego uberizado. Essa é a proposta do capital. Fico me perguntando se essa conexão funciona e a quem ela, de fato, atinge. O dispositivo mencionado pode até ser rico em informações, mas pouco leva os indivíduos a estabelecer nexos entre a cultura aprendida e as questões humanas fundamentais. Em outra roupagem paradigmática, não desenvolve o que Edgar Morin, se baseando em Michel de Montaigne, chamou de “cabeça bem-feita”. Jogam crianças e jovens mais nas sombras da caverna do que na luz do esclarecimento que nos encaminha à alteridade e às vivências simbióticas.
Está ficando, em outras palavras, cada vez mais difícil dar aulas. O problema, certamente, não são, somente, as fissuras provocadas pelas tecnologias. Existem outras situações que tornam o trabalho docente complexo e nos levam a pensar nas relações que a humanidade constrói em torno dos conhecimentos.
Nesse interregno, precisamos (re)ler uma obra indispensável na compreensão dos contextos em que vivemos: Educação e emancipação. Este livro, escrito por Theodor Adorno, será de grande valia para auxiliar no pensamento em torno do avanço hodierno da barbárie, visível em contextos nos quais indivíduos estão se tornando meros “zumbis” em busca de uma tela que não demanda pensamento, mas promete provocar “prazer”. Por outro lado, leva as pessoas à semiformação, marcada pela cesura cognitiva. Assim, mesmo cansadas, é comum ver que as pessoas ainda têm ânimo para mexer no celular, rir com memes e realizar inúmeras postagens. Para isso, quase sempre surge tempo.
É lamentável ver que muitas crianças e adolescentes, já quando acordam, “alimentam-se” com o vazio do TikTok, o qual vem condicionando comportamentos culturais nefastos. Para esse dispositivo, sobra tempo, paciência e indivíduos colaboram com suas gaiatices e informes no formato trem-bala, em virtude de seu viés meramente panfletário. Já na escola, choram e, dentre outros tantos fenômenos, têm crises severas de pânico. Lembro-me de ter ouvido um estudante da 3ª série do Ensino Médio asseverar que escrever era, para ele, pior do que se ajoelhar no milho. Por outro lado, convivo com uma criança de apenas nove anos que chora, profundamente, ao saber que precisa ler um texto de apenas três páginas para responder a uma atividade de Língua Portuguesa exigida na escola onde estuda. Não podemos banalizar essas questões.
O reflexo de tudo isso são turmas que secundarizam ou menosprezam o trabalho escolar, considerando-o extremamente chato, enfadonho, a-pragmático e destituído de sentidos simbólicos. Por corolário, abunda a pobreza lexical, a dificuldade para se compreender metáforas e outras figuras de linguagem, bem como as fraquezas na escrita de textos simples/curtos e graves desafios em cálculos lógico-matemáticos.
Como é possível um estudante de Ensino Médio ler a frase “conscientizar o respeito às mulheres” e a considerar coerente depois de mais de uma década de estudo? Ficam visíveis nossos descompassos com as leituras e os livros. É fácil apresentar o nome de Machado de Assis, só para citar um exemplo, em redes sociais, mas dá trabalho e se exige esforço ao lê-lo a fim de apreender suas nuances literárias em meio às obras que criou.
Enquanto muitas redes sociais prestam um desserviço à subjetividade humana, esvaziando-a, apropriando-se de forma precária da cultura, tornando o ridículo um capital político, conforme nos lembrou Marcia Tiburi, ainda vejo “luz no final do túnel dos desesperados”, ainda há um “cais no porto pra quem precisa chegar”. A esperança ético-política mobilizadora que irrompe está na atividade daqueles/as que ainda acreditam nos atos de currículo emancipatórios como veredas para suplantar essas perversidades, mesmo sabendo que se trata do famoso “trabalho de formiguinha” na luta contra as fendas da barbárie. É, de fato, doloroso ver que parte da juventude é “uma propaganda de refrigerantes”. Em meio a tanta desvalorização do Magistério, professores/as talvez insistam no que fazem por acreditar, utopicamente, em “causas perdidas”. Como diz a letra de uma das músicas de Engenheiros do Hawaii, mesmo sendo “otários” que visualizam “peixes fora d’água” e “borboletas no aquário”, existe o famoso amor às causas que uma parcela da sociedade já acredita não ter solução. Quem não labora na docência por mera necessidade, deve ter muito de Dom Quixote. Destarte, luta para que a barbárie não se consolide como destino a priori e política educacional cotidiana.
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.
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