A escola não é apenas um lugar de vida;
é, sobretudo, um lugar de aprendizagem.
António Nóvoa
Já ouvi por aí que o futuro é algo numinoso, pode ter um jeito faceiro e, não raro, costuma nos surpreender. Após um ano turbulento de readaptação às vicissitudes provocadas pela COVID-19 e finalizado o período de férias coletivas, quem labora em ambientes formais de ensino passa a ser convocado(a) a pensar no que ocorrerá, tendo a chance de participar de mo(vi)mentos formativos em torno da escola, de suas funções sociopedagógicas e das práticas de planejamento/avaliação que serão executadas no decurso do ano letivo visando, dentre outras tantas questões, às aprendizagens significativas dos(as) educandos(as).
Muitos temas dos encontros são atrativos, enchendo os olhos dos(as) professores(as), outros fecundos teoricamente e uma grande maioria só serve de pano de fundo para que muitas equipes docentes e gestoras apareçam nas redes sociais com temas da moda, a induzir na mente dos(as) internautas que a escola na qual trabalham deve ser a cobiçada por todos(as), uma vez que atende ao que se pressupõe ser de “qualidade”. Tenho medo dessas ciladas. Na obra O regresso dos professores, por exemplo, António Nóvoa nos convida à reflexão ao enfatizar que a “moda é a pior maneira de enfrentar os debates educativos”. Ao participar da mediação de encontros educacionais e também na condição de professor de escola pública, costumo visualizar grandes temas que apagam reais impasses a serem resolvidos.
Fico me perguntando por que falar de temas tão distantes ou alheios à realidade de muitas unidades educativas. A LDB apregoa, in verbis, que o calendário escolar necessita ter, no mínimo, duzentos (200) dias letivos, nos quais os sujeitos curriculantes, por meio de seus atos, irão entretecer atividades político-pedagógicas, ou seja, aprender, um verbo potente que tem sido escamoteado em vários contextos escolares, onde se faz de tudo um pouco, menos aprender Geografia, Matemática, Língua Portuguesa, Redação…
Desde o cataclisma pandêmico da COVID-19, passei a refletir, (meta)criticamente, com alunos(as) que comigo convivem e tecem experiências de ensino/aprendizagem sobre o que fazemos, diariamente, na escola. Uma das cenas surgiu após a escolha da língua estrangeira para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): por que optar por espanhol se nunca tive esse componente e frequento aulas de inglês desde o 6º ano do Ensino Fundamental? Em um gesto simples, muitos(as) parecem não se dar conta dos efeitos e das lacunas/fissuras dos atos de currículo em suas vidas.
Passar mais de uma década na escola e dela sair analfabeto funcional ou sem saber escrever um simples bilhete e realizar básicas operações lógico-matemáticas é uma situação comum que nos impede de alcançar uma legítima cidadania e, por corolário, uma democracia portentosa.
Em 2022, em três turmas de Ensino Médio de uma escola pública, precisei fazer uma exposição sobre poder e ideologia em cenários geopolíticos. Conversa vai, conversa vem, acabei falando sobre a Primeira Guerra Mundial, sobre a qual lancei algumas indagações. As testas franziam e, na condição de bom observador, notei que o assunto e os contornos que fiz em torno dele estavam bem distantes da bagagem histórica dos(as) discentes, os(as) quais desconheciam o apoteótico assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e o motivo que levou ao cenário bélico de 1914. Isso no campo da História! Se eu fosse citar outros exemplos, o espanto seria ainda maior. Haja coração!
Que a escola seja um espaço de escuta atenta, como sempre devia ter sido. Nada contra. Que seja um lócus de acolhimento. Nada contra. Que ofereça alimentação e suporte psicológico a quem precisa. Nada contra. Que promova o diálogo e encontros heurísticos em torno da arte e de suas múltiplas manifestações. Nada contra. Que dialogue com as multiculturalidades que existem dentro e fora dela. Nada contra, mas que nela se aprenda o que Dermeval Saviani denominou, em sua Pedagogia Histórico-crítica, de saberes historicamente produzidos, com os quais se tecem fios da emancipação.
Passar 200 dias na escola e pouco aprender do conhecimento historicamente acumulado coloca o(a) estudante em um campo de exclusão, pois tais saberes são a chave da transformação social de que tanto nos falou Paulo Freire em suas obras divulgadas pelo mundo.
Não podemos admitir 200 dias para “prender” um(a) aluno(a) em salas (físicas e digitais) e contextos nos quais pouco se contribua para reerguer sua vida, dando a ela novos contornos pragmáticos e paradigmáticos. Mais do que nunca urge evitar o surgimento de jaulas de aula. Aprender é um verbo exigente e requer muito esforço intelectual, inclusive e majoritariamente do(a) próprio(a) aluno(a) que, embora possa ter acesso a excelentes profissionais, pode optar por se manter passivo e apático, sendo que, assim, não aprenderá os saberes de que necessita para participar, ética e eficazmente, da vida social.
Passar mais da metade do ano e mais de oitocentas (800) horas estudando diversos componentes curriculares sem que isso faça ser ampliado o capital cultural de um(a) estudante deveria ser motivo de muita preocupação para nós, professores(as), principalmente das escolas públicas.
Queria muito que as escolas e suas jornadas, antes dessa aventura pensada chamada ano letivo, abondassem o que Nóvoa chamou de “inflação retórica” e se distanciassem dos temas da moda, refletindo, com mais afinco e olhar balizado teoricamente, sobre essas situações reais com as quais lidamos no dia a dia e que impedem os avanços pedagógicos. Em outras palavras, não é necessário abraçar burocracias que só complicam o cotidiano docente. Precisamos fazer o que, de fato, é preciso fazer: estimular aprendizagens, embora saibamos que isso não seja fácil, mormente em tempos marcados por intensa desatenção cultural e pela presença maciça de dispositivos tecnológicos.
A escola pode até transbordar com tantas funções a ela designadas por dispositivos regulatórios, mas carece, urgentemente, de voltar a cumprir sua missão nevrálgica que a torna insubstituível na sociedade: fazer que todos os sujeitos que nela ingressam aprendam e partilhem, da maneira mais humana possível, essas aprendizagens, sem ceder às chantagens do mercado do espetáculo e do consumo. Isso é condição sine qua non que torna a escola uma instituição indispensável. Sem ela estaremos em situação periclitante e, como bem ponderou o educador português citado neste texto, “não é possível fazer educação no cinismo”.
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.
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