Quando eu não escrevo, estou morta.
Clarice Lispector
Tudo, no mundo, existe para ser colocado em um livro.
Mallarmé
Em minhas imersões pelo vasto e labiríntico mundo das palavras, diversas vezes optei por fazer uso da função metalinguística, tentando compreender a relação humana com a linguagem e a literatura. Por isso, é comum, aqui e alhures (em todas as minhas obras e textos esparsos), algum(a) interlocutor(a) ler o que penso sobre a díade complementar leitura/escrita, bem como acerca do poder, alcance e desdobramentos dessas práticas, entendidas como dispositivos de (auto)formação e companhia em momentos nos quais optamos pela solitude, aquela experiência poiética em que a partilha simbólica muito representa para o processo de crescimento pessoal e, talvez, profissional. Nesse diapasão, sigo sempre o sábio conselho de Cris Pàz: “na dúvida, eu me cerco de amigos e de livros. Na certeza, também”. Assim, durmo, acordo e laboro com eles, meus eternos companheiros de travessia.
Quando estava cursando a última etapa da Educação Básica, há quase 15 anos, nem imaginava que, em um período posterior, pudesse preencher uma ficha profissional usando, para me identificar, a categoria “escritor”, até então por mim associada aos consagrados autores de clássicos que eram impostos pela instituição escolar como leitura obrigatória para ingresso nos tradicionais exames vestibulares em voga até então. Mesmo com essa possibilidade, nunca a executei, pois, tal como enfatizou Clarice Lispector em entrevista concedida a Júlio Lerner, sou amador e só escrevo quando quero, destituído de obrigações e gozando de intensa e saborosa liberdade. Também não sou movido por cobranças exógenas, as quais costumam, sobremaneira, me bloquear. Ressalto que, de fato, na escola lia somente autores. Lembro-me de ter apreciado apenas um livro de autoria feminina, A hora da estrela. À época, meus/minhas professores(as) pouco falavam de gênero, interseccionalidades e sobre o afastamento das mulheres de um universo no qual intensa e qualificadamente produzem.
A experiência de colocar em prática um dos três conselhos que muitos(as) dizem, no cotidiano, ser universais – ter um filho, plantar uma árvore e escrever uma obra – só surgiu depois da conclusão de minha primeira graduação e após um longo hiato pelas veredas da linguagem escrita. O título do livro veio em forma de insight. Pouco acredito em inspiração, mas só consigo começar a escrever se tiver um mote inicial a perseguir. Por isso, falo mais de transpiração, vômitos de linguagem e seus escrutínios do que de iluminações divinas no processo criativo. Assim, surgiram meus textos com os quais pensei que outras pessoas pudessem ser beneficiadas, positivamente, com o que tinha a comunicar. Inicialmente, temia, além do fracasso, o bloqueio da crítica literária, fatos que justificaram os inúmeros exercícios hermenêuticos feitos por mim mesmo em torno de minha própria obra, buscando ser o mais hermético possível. Consolava-me vendo alguns vídeos elucidativos onde Marcia Tiburi fazia alusão ao seu livro “encalhado” Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem. Digo “consolo” porque, no momento em que falava, a mencionada filósofa já estava em outra conjuntura no mercado editorial, no qual viria a ganhar maiores reconhecimentos em seguida, mesmo com a intensa e irrefletida pressão de pessoas, grupos organizados e instituições vinculados à (extrema) direita política.
De repente, resolvi enviar o arquivo de minha primeira obra para dez amigos, os quais a avaliaram positivamente. Não tinha o desejo de ser Paulo Coelho, tal como revelou um ex-BBB em uma de suas obras. Minha cobiça nevrálgica era que as pessoas pudessem abraçar palavras e seus arranjos por mim delineados e encontrassem um liame que as conduzisse ao pensamento crítico-reflexivo e, posteriormente, ao humanismo e à mudança. Ansiava por uma afetação literária propositiva e transformadora. Satisfação vinha quando encontrava, às vezes no intervalo entre uma aula e outra, alguém comentando fragmentos de minhas crônicas, gênero que adotei após influência majoritária do mineiro Rubem Alves. Até hoje, atrevo-me pouco à poesia e nunca escrevi romances, embora já tenha pensado em dois possíveis enredos, ainda não colocados em prática por medo de me perder nas superfícies movediças da imaginação. Tampouco, esbocei qualquer história infantil.
De lá para cá, não parei. Escrevo sobre algum assunto toda semana, mesmo diante da agitada vida profissional que vivencio, mediando trinta aulas em escolas públicas e particulares. Escrever virou rotina, às vezes até colocada em prática quando estou bastante cansado e a mente resolve me trazer à tona algum tema/problema captado no dia a dia. Além disso, tento inocular tais ideias em “meus” discentes, informando a alegria e, pari passu, as exigências de uma trajetória que pode redimensionar toda nossa rota existencial, uma vez que os conhecimentos de mundos reais e fictícios se travestem em caminhos-possibilidades de emancipação, às vezes de fuga – para fins de futura compreensão – das agruras que costumamos vivenciar e para as quais não temos as tão desejadas soluções.
Antes das obras – hoje, são quatro: Fragmentos sinestésicos, An…danças: facetas cotidianas, BNCC: que axé ela tem?, Eu não posso ler seu livro – costumava escrever alguns artigos de opinião para sites locais, o que me proporcionou conhecer muitos(as) interlocutores(as) com os(as) quais passaria a trocar profícuas ideias futuramente.
Em seus discursos, Marcia Tiburi sinaliza que vive porque escreve e, por corolário, escreve porque vive. Vida e palavras são, portanto, elementos que se consubstanciam, podendo nos auxiliar na superação dos cenários áridos que são imantes à experiência existencial. Fazer casamentos com vocábulos, como poeticamente sinalizava Manoel de Barros, configura-se como estratégia capaz de promover simbioses humanas e alimentar, filosoficamente, a subjetividade, a qual vem sendo cobiçada e atacada por gadgets e dispositivos que, cada vez mais, minam a concentração e a capacidade de, em torno dos mais variados (con)textos, gerar novos mundos, maneiras de pensar, ser e agir.
Escritores(as) são centelhas divinas, mas também podem promover destruições e barbáries caso optem por colocar as palavras na edificação de formas de pensar embrutecidas que bloqueiam ou excluam a alteridade. Outra cilada se instala quando livros, que deveriam ser dispositivos de emancipação ética, intelectual e política, desembocam nas amarras da indústria cultural, virando uma mera mercadoria e prótese de conhecimento a fomentar ideologias fatalistas dominantes e a propagação do status quo.
Como nascer e viver são atos hipercomplexos que vêm sem vaticínios e tutoriais, o ato de escrever, vivenciado de forma profissional ou espontânea, é um gesto de esperança, de soprar a vida quando as horas, inexoravelmente, morre, que se eleva diante do caos e das múltiplas experiências negativas espalhadas em jornais e no dia a dia.
Marcia Tiburi defende que “o livro se torna a chance bem prática e rápida de nos devolvermos a nós mesmos”. Por isso, quem se relaciona com palavras tem, dentro de si, mesmo que involuntariamente, a convicção de que outro mundo é possível. Sem escrita, a vida se torna mais solitária, confusa e desagradável e, certamente, morreremos por não compreendermos o mais secreto de nossa psiquê e não termos os lenitivos e símbolos que os textos nos trazem em forma de oxigênio vital. Sem escrita, não teríamos Clarice, Amado, Hilst, Colassanti, Galeano, Fagundes Telles, Evaristo, Buarque entre nós. Escrever é, portanto, uma forma de agir no mundo e suportar suas intempéries e limitações.
OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.