Entrevista: O que o acidente com a Faneob ensinou a Kayky, hoje com 17 anos, sobrevivente da tragédia

Kaiky Reis Brito, hoje com 17 anos, era quadritonista na Faneob. Ele é um dos jovens que sobreviveu ao trágico acidente com a banda na manhã de 25 de novembro de 2018, no km-382 da BR-116, em Santa Bárbara, um acidente que chocou não só Euclides da Cunha, mas todo o país.
Kayky recebeu Retrato e Fatos em sua casa e falou abertamente sobre o episódio.

Kaiky Reis Brito, hoje com 17 anos, era quadritonista na Faneob. Ele é um dos jovens que sobreviveu ao trágico acidente com a banda na manhã de 25 de novembro de 2018, no km-382 da BR-116, em Santa Bárbara, um acontecimento que chocou não só Euclides da Cunha, mas todo o país. À época com 14 anos, Kayky teve a perna direita fraturada e precisou fazer duas cirurgias no maxilar.

Ele não se recorda de muita coisa do acidente. Na hora do impacto, estava dormindo, mas as marcas no seu rosto e em outras partes de seu corpo não lhes permite deixar completamente para trás aquela tragédia.

Ele recebeu Retratos e Fatos em sua casa e falou abertamente sobre o episódio. E são estes relatos, muitos inéditos e reveladores, que você confere a seguir. Boa leitura!

Você estava naquele ônibus que levava o pessoal da Faneob para uma competição em Antônio Cardoso. Como é para você lembrar daquele dia três anos depois?

É muito difícil, ficaram memórias inesquecíveis, apesar de não lembrar muito do que aconteceu no momento, mas sempre é  bem difícil. Cada vez vai se passando o tempo, ficando mais distante do que aconteceu, mas é bem difícil as memórias que ficam, o que a gente escutou naquele exato momento, é difícil de lidar, mas a gente vai se acostumando com o que aconteceu.

Quais as lembranças que você tem daquele dia antes do acidente?

Eu me lembro que nós estávamos no colégio, tomamos café, nos reunimos, arrumamos os instrumentos, afinamos e fomos para a viagem. Dentro do ônibus, antes de acontecer, eu estava conversando com uns amigos, escutando música… Quando o ônibus bateu, eu não vi, eu estava dormindo, acordei sendo retirado do ônibus. Eu não estava com a visão muito boa, só estava com 20% dela, só escutava mais barulho de sirene, pessoas gritando.

Quanto tempo levou para você se dar conta do que tinha acontecido?

Demorei um pouco, só caiu a ficha que tinha acontecido aquilo quando eu cheguei no hospital e acordei depois da primeira cirurgia que eu fiz. Aí a ficha caiu do que tinha realmente acontecido.

Você acha que ficou com algum trauma após o acidente?

Especificamente, não fiquei com tanto trauma porque eu praticamente não vi nada, de pessoas machucadas, gravemente lesionadas eu não vi ninguém porque eu estava com a visão muito pouca. A única coisa mesmo é a tristeza com os que faleceram.

Você ainda se recorda muito do episódio? Com que frequência as imagens te vêm à cabeça?

Eu lembro pouco, não muito. No início, poucos meses após o acidente, eu ficava pensando muito no que ocorreu, às vezes me limitava de alguma coisa por causa disso. Fiz alguns acompanhamentos psicológicos e depois disso me lembro muito pouco.

O que ficou de positivo para você desse acidente? O que você aprendeu com tudo isso?

Principalmente, que a pessoa tem que viver mais, cada momento da vida que vai passando, o que vai acontecendo, e se aproximar mais dos familiares, amigos, e viver a vida cada hora, cada minuto, cada segundo. Aproveitar mais a vida, o que está acontecendo no momento.

Você era próximo dos meninos que se foram?

Todos. Todos eu tinha uma aproximação muito grande. Antes de tocar quadritom, eu tocava trompete, e a maioria dos meninos que faleceu, foram eles que me ensinaram a tocar. A maioria, não, todos me ensinaram algo dentro da banda, passaram experiências.

O que você percebe dos outros meninos que estavam no ônibus e que sobreviveram? Como eles estão hoje na sua opinião?

Alguns ficaram mais diferentes, fechados, não expõem muito as coisas. Outros mudaram bastante o jeito de ver a vida, de pensar, já expõem mais as coisas, desabafam mais, e muitos mudaram o seu estilo de vida.

O que mais você se lembra daquele dia? Era um dia alegre, era um dia tenso por conta da competição?

Aquele dia estava sendo um dia muito estranho. Não estava sendo um dia igual aos outros. A maioria das coisas estava tudo dando errado, como se fosse um sinal para nós não fazermos aquela viagem. Primeiramente foi o motorista do ônibus, que não era para ser o que foi, era outro motorista, mas ele não apareceu. Esse motorista que faleceu estava em um dia de férias, de folga. A maioria das coisas não estava acontecendo do jeito que nós planejamos. Tudo dando errado.

Em algum momento da sua vida você chegou a imaginar que isso pudesse acontecer com você? Ninguém está imune a um acidente, vocês viajavam muito com a Faneob, era uma coisa que você cogitava?

A gente nunca deixou de pensar que poderia acontecer, sempre fomos com um certo medo de viajar. Nós gostávamos muito de viajar, mas sempre íamos com certo medo, mas eu nunca pensei que algo tão grande assim ia acontecer.

O que mais tem te dado força nesses anos para superar o baque do acidente e a perda dos amigos?

Quando acontece algo comigo, eu coloco como objetivo sempre eu dar a volta por cima. E o que sempre me deu motivo de permanecer forte, além da energia boa que meus amigos que estavam no acidente e que sobreviveram passavam para mim, o acompanhamento psicológico, eu sempre mantive a mente forte para não se deixar levar pelas coisas ruins, sempre mantive a mente focada em melhorar, ficar melhor.

Qual a sua opinião em relação a esse carinho que Euclides da Cunha demonstrou por vocês e pela Faneob?

É muito gratificante, uma cidade, querendo ou não, pequena, mas com seus habitantes, população muito honrosa, religiosa também. E depois daquele acontecido, a cidade toda se abalou e formou uma família em volta da Faneob, e nunca deixaram de apoiar.

Se você pudesse mandar uma mensagem para seus amigos que se foram, o que você diria para eles?

Falar que apesar deles terem falecido, estava tudo no plano de Deus, e eu sei que eles estão sempre comigo, sei que eles estão em um bom lugar e que estão me escutando e sempre estarei com eles, mesmo que eles tenham partido, e que eles sempre vão poder contar comigo para qualquer coisa.

Os sinais que a mãe de Kaiky teve de que aquele dia estava sendo estranho

Ao final da entrevista, a mãe de Kayky, Viviane Reis, não conseguiu conter o silêncio e as lembranças daquele dia e nos surpreendeu com seus relatos. Nas viagens, ela sempre ajudava com a alimentação e os uniformes da banda.

Segundo ela, eles receberam diversos sinais naquele dia, mas não se atentaram.  “Primeiro foi o sono, que a gente nunca dormia tanto e nesse dia nós acordamos atrasados; e a gente nunca sai sem fazer a oração, e nesse dia a vela não ficava acesa. Nós dois ficamos de pé aqui e essa vela apagando, apagando. Teve um momento que eu falei assim: ‘vamos Kayky, depois a gente pede para o seu pai acender’”. Mas a vela nunca foi acesa naquela manhã. Dez minutos antes do acidente, ela ligou para o marido para fazer o pedido, mas a santa havia caído e se quebrou.

Ela também relatou que na manhã antes da viagem, muitas coisas aconteceram. “Houve muita desistência das pessoas. Até o último ensaio, estava todo mundo animado e no domingo já não tinha mais animação, era todo mundo ficando doente, tanta coisa”, lembra ela, que também menciona o fato de o motorista escalado para viajar não ter sido localizado pouco antes da saída, e lamenta ter deixado o filho viajar, pela primeira vez, em um ônibus diferente do dela.

A desistência a que Vivian se refere foi a de dois gêmeos que, de última hora, já de uniformes nas mãos, decidiram não viajar mais porque “estavam com um mau pressentimento”.  No dia da viagem, três ônibus seguiam com destino a Antônio Cardoso. Na frente, o veículo com os instrumentos; no meio, o carro com os homens, e, ao fundo, o transporte das mulheres.

Kayky e sua mãe, no Educandário Oliveira Brito, dia de apresentação da Faneob. Foto: Arquivo Pessoal

Vivian foi a primeira a prestar socorro ao filho. Ela segurou o maxilar dele, completamente deslocado, em suas mãos. Somente quando chegaram ao hospital da cidade foi que perceberam que uma das pernas também estava fraturada. Na agonia, ela nem percebeu que parte do sangue sobre seu corpo era do rompimento de uma cirurgia de laqueadura que ela havia feito há apenas três meses.

Até hoje Vivian luta contra a ansiedade, que, volta e meia, insiste em não lhe deixar seguir em frente. “Se eu ouvir um barulho de sirene, de ambulância eu fico me acabando, chorando”.

A volta de Kayky para a Faneob de forma definitiva ainda é incerta. Ele chegou a participar de algumas apresentações em Euclides da Cunha e municípios vizinhos, mas tanto ele quanto a mãe concordam em uma coisa: nunca mais será como antes.

 

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