Ser professora e professor, no Brasil, é um grande desafio. Um desafio que pode nos causar dor e alguns momentos de realização e reconhecimento pelo trabalho feito. É um ato de coragem e de resistência. Seguiremos entrando em nossas salas, mesmo diante dos riscos, pois o nosso trabalho pode, de alguma forma, promover transformações, mesmo que sejam pequenas, nas vidas das pessoas.
Profa. Dra. Cleonice Elias da Silva
Ando dizendo a muitos/as colegas de trabalho, ultimamente, que a tragédia ocorrida na Escola Estadual Thomázia Montoro não será a última. Em minha vida, inexiste qualquer inclinação para cartomancia e seus vaticínios, tampouco apresento bola de cristal, mas é fácil perceber os descaminhos que nossa combalida educação enfrenta a cada dia. Quem labora, de fato, no chão das escolas, sejam públicas ou particulares, sabe do que estou falando: sem romantizar, está cada vez mais difícil com-versar com estudantes. Vou pedir licença para escrever “conversar” a partir da junção de um verbo com uma preposição essencial de companhia, para fins ético-políticos de análise da convivência escolar hodierna.
Com todo respeito aos/às religiosos/as, não vejo tanto sentido, por exemplo, diante das cenas atuais que envolvem “toques de recolher” nas unidades educativas meramente pedir “orações ao passar por uma escola” ou distribuir laços e bolas brancas em alusão à paz sem alterar as condições que estruturam, geram e disseminam violência e barbárie. Em pleno século XXI, o texto de Theodor Adorno necessita, mais do que nunca, ser (re)lido. Ao fazer isso, dá a impressão que ele tinha ganhado de Deus o “dom” de visualizar o futuro, como se isso fosse possível, só que não. O teórico de Frankfurt já percebia, com seu acurado senso crítico-filosófico, o que acontece quando criminalizamos conhecimentos e criamos uma indústria cultural calcada em preconceitos, ódios em diversos matizes e violência contra a alteridade.
Em vários contextos escolares, muitos/as professores/as estão tendo que pedir “desculpas” por ações que não cometeram para que não sejam ser ameaçados ou mortos. Gentileza e valores básicos se perderam no meio do caminho e, destarte, o trabalho pedagógico fica imensuravelmente afetado, pois, agora, é preciso também se preocupar com os “traumas” que algumas pessoas, ancoradas no senso comum, dizem estarmos gerando ao fazer nosso próprio trabalho. Sou professor de Língua Portuguesa e já escutei que minhas correções textuais estavam provocando fúria nos/as alunos/as. Se for errado fazer isso, confesso que já estou em uma espécie de limbo a caminho do que se convencionou chamar de “inferno”, uma palavra-símbolo que mobiliza as pessoas, basta lembrar do personagem de Graciliano Ramos em Vidas secas. Por sorte, lembrei-me que “não existe pecado do lado debaixo do Equador”.
Depois de uma longa e mortífera pandemia COVID-19, temos que conviver com o cataclisma da violência escolar e suas manifestações nefastas no cotidiano. O que era para ser locus amoenus virou locus horrendus e, o pior, tal transformação vem se banalizando. No lugar do amor e da paz, vem se inserindo, nas escolas, o ódio e a destruição do bem que o(s) outro(s) nos proporciona(m).
Similares situações já aconteceram no passado e fazer um inventário delas talvez não seja nada produtivo. Se possível fosse hierarquizar, perceberíamos que as consequências do que aconteceu na Escola Municipal Tasso da Silveira e na Escola Estadual Prof. Raul Brasil foram bem maiores e a história, nesse sentido, vem se repetindo como tragédia, o que deveria nos levar à reflexão sobre o perfil societário que vem sendo desenvolvido a partir de influências culturais perversas, limitantes e mortíferas para própria ideia de humanidade em si.
Em outras palavras, é como se usássemos uma miríade de verbetes (a exemplo de paz, democracia, amor, alteridade, humanismo etc.) e não percebêssemos que, na prática, nossas ações estão parciais ou totalmente na contramão. Falta-nos bastante autocrítica, vertente que só se realiza em um projeto emancipatório de educação. Parafraseando Caetano Veloso, várias “coisas” estão fora da ordem mundial, só que dessa vez as violências não estão se sucedendo no cenário norte-americano, elas estão ao nosso lado, no trabalho.
Recentemente, li um artigo da Profa. Dra. Cleonice Elias da Silva, intitulado “Ser professora e professor, no Brasil, é um ato de coragem”, onde ela afirma, de maneira peremptória, que a escola é uma instituição falida. Não sei se concordo com tal adjetivação, mas se minha discordância permanecer, reconheço que estamos bem próximos dessa condição, haja vista a ausência deliberada de políticas-públicas de revitalização de um espaço no qual docentes estão trabalhando mais na condição de coaches do que mediadores dos saberes científicos, filosóficos e artísticos historicamente acumulados, o que desemboca em inúmeras ações destrutivas.
As unidades educativas, por si só, não conseguirão juntar os cacos de uma sociedade que se esboroa a cada dia, dissemina ódio em massa, desconsidera minorias e, por outro lado, prega valores religiosos que não se coadunam com as vivências práticas cotidianas. Instituições educativas que vivenciam “toques de recolher” deveriam nos levar a uma tremenda crise ético-política. A escola só tem sentido se for diferente da sociedade, diz o Prof. Dr. António Nóvoa, mas o que temos visto é uma instituição que está com intensas dificuldades para dar conta de suas funções nevrálgicas e, ao menos, tentar encontrar caminhos transformativos. Haja emoção, coragem e persistência. Enquanto isso não se encontra, a indústria farmacêutica lucra com a venda de ansiolíticos/antidepressivos e o poder público afasta inúmeros/as servidores/as por síndrome de Burnout e outros tantos problemas.
Como visto, os cenários são, cada vez mais, desoladores, mas mesmo sim, continuamos caminhando, ninguém sabe, por vezes, para onde. Trazendo à tona o “José” de Carlos Drummond, a expressão “e agora?” parece nos paralisar, mormente em tempos que o mar secou, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou… Nessa situação, tenho comiseração por meus/minhas colegas de profissão que estão sozinhos no escuro, qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, perguntando-se, e agora, José? José, para onde?
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.
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