Cê quer saber? Então, vou te falar
Por que as pessoas sadias adoecem?
Bem alimentadas, ou não
Por que perecem?
Tudo está guardado na mente
O que você quer nem sempre condiz com o que outro sente […]
O mecanismo do sistema é sugar sua alma vivo
Seu sangue, seu suor, são só um detalhe nisso […].
Criolo, em “Ainda há tempo”
Certa vez, pensei em elaborar um texto cujo título também poderia ensejar a escrita de um romance: Professores(as) no divã, em virtude da vontade que tenho de descobrir o que os(as) colegas de travessia profissional revelam nos processos de terapia. Não possuo tanto interesse pelos casos íntimos ou relacionados à vida familiar, mas pelas nuances laborativas que vêm impedindo muitos(as) de ministrar artefatos culturais e ético-políticos básicos: as aulas, ou até mesmo incitando o abandono do emprego, mesmo que não se tenha outras condições financeiras de sobrevivência.
São muitos os casos diários de afastamento motivados por uma saúde mental esfacelada. Situações envolvendo burnout, depressão, transtorno afetivo bipolar ou de ansiedade generalizada, bem como síndromes do pânico representam alguns entre os vastos exemplos que podem ser mencionados, os quais se ampliaram com o cataclisma pandêmico vivenciado a partir de 2020.
Caso fosse feita uma pesquisa com docentes, do jeito que (des)anda o sistema educacional, eivado de fracassos contínuos e tentativas de “remendos” insignificantes, penso que muitos(as) ratificariam a tese de que “a vida anda louca e as pessoas andam tristes”. A poética de Vander Lee, mesmo enfatizando outro contexto, infelizmente, serve hoje para fazer alusão ao campo educacional.
Não bastasse isso, ainda existe a famosa ausência de “consciência de classe”, conceito que possibilita enxergar, de forma (meta)crítica, múltiplas opressões vivenciadas no dia a dia, seja por meio de salários aviltantes, carga horária excessiva, turmas superlotadas, ausência de materiais didáticos e de políticas públicas que só objetivam controlar o exercício da autonomia docente, cerceando o desenvolvimento de uma práxis transformadora e emancipatória, a exemplo da BNCC. Para isso, erguem-se teorias meritocráticas e gerencialistas, segundo as quais ações docentes não se coadunam com fatores macroestruturais existentes na sociedade e que vêm gerando disparidades de diversas naturezas. Assim, surgem e se multiplicam ações de bonificação para aqueles(as) que alcançam metas, apesar de tudo e dos(as) que, com a devida razão, reclamam. Nesse contexto, os “fins justificam os meios”. O bordão “você que lute” também nunca foi tão repetido.
Com essa ideologia e racionalidade, o campo educacional tende a piorar e, por corolário, se destruir, prejudicando ainda mais os(as) professores(as) que, em virtude dos vários problemas que os(as) afetam, vem se tornando “sofressores(as)”, neologismo urdido para se referir àqueles(as) que enfrentam condições adversas, com elas sofrem, mas ainda não conseguiram sequer percebê-las, o que dificulta ou impossibilita a transformação.
Desde quando iniciei minha jornada na condição de professor, trabalho em escolas públicas e particulares, sempre de forma concomitante. Nesses ambientes, é comum encontrar profissionais destas últimas asseverando que os docentes das primeiras “choram de barriga cheia”, pois recebem “bons salários”. Destarte, nota-se que é mais fácil considerar o pro labore alheio do que refletir sobre suas próprias condições adversas, porquanto são “colaboradores(as)” que fazem jus (ou deveriam) a um parco salário mínimo, sendo obrigados(as), inclusive, a incorporar o valor “espírito de dono”, geralmente com o apoio de coaches.
Uma das atitudes mais perversas do neoliberalismo na subjetividade e na prática humanas é a destruição da ideia de coletividade/comunidade. Tal ideologia desconsidera o conceito de classe, tornando uma virtude a competição de todos contra todos, em um regime em que cada indivíduo se torna empresário de si mesmo, condição com a qual é estimulado a seguir, pois ela trará sucesso, retorno financeiro e, portanto, a felicidade desejada e incitada pelo mundo mistificatório das propagandas.
É triste notar que, não bastassem as condições materiais opressoras, uma miríade de educadores(as) ainda não percebeu os ditames desse sistema e a forma com a qual ele invade o campo da educação. Isso só é possível por meio do desenvolvimento da intelectualidade transformadora, tal como pontuava Henry Giroux, a qual, ainda, não surgiu em muitas escolas.
Cada vez que leio uma obra relacionada ao neoliberalismo e seus desdobramentos, fico encabulado com as vias para as quais o mundo vem sendo conduzido. Nós precisamos de outras veredas, já sinalizava Edgar Morin, mas estas demandam a percepção de que a realidade atual é histórica e culturalmente produzida para fazer valer a perpetuação do status quo. Cabe, portanto, a cada professor(a) desnaturalizar problemas cotidianos, ao menos no plano paradigmático, embora neste permanecer não seja suficiente.
Diante da teoria, confesso que, por vezes, tendo a cair no pessimismo, mas tento mudar de lado quando o assunto é a realidade prática. Estamos em um barco-destino que foi, intencionalmente, arquitetado para nos destruir ou adaptar às situações mais desumanas possíveis. Alterar esse modus vivendi não é tarefa fácil e, talvez, não tenhamos todo tempo do mundo.
Há, atualmente, sofressores(as) que só querem gritar ao mundo seu desejo de “chorar até cansar”, situação que deveria gerar mais alteridade e políticas públicas de atenção, uma vez que, embora fale dos(as) profissionais da educação, também devo reconhecer que os(as) estudantes vivenciam contextos periclitantes muito similares ou até piores.
Já se sabe qual o “remédio” para esses imbróglios que nos perturbam. Não serão os tarja-pretas a nos salvar, não obstante eles sejam necessários em alguns momentos. Se ao longe já é possível perceber, de perto é visível que nenhum(a) professor(a) é ou está “normal”. Seria muito bom que fôssemos “maluquinhos(as)” em uma perspectiva pensada por Ziraldo. Assim, estaríamos juntos(as) espalhando nossa “maluquez misturada com lucidez”.
Diante dessas situações taciturnas, é preciso escutar os(as) sofressores(as) e compreender seus sofrimentos, adotando uma perspectiva de integração, pois se a dor já é cruel, tais sujeitos ainda têm de conviver com o estigma daqueles(as) que desconsideram e deslegitimam suas situações patológicas, enfatizando ser uma forma de proteção ou “teatro para não ministrar aulas”.
Sei que ficaria um bom período sentado, ouvindo o que sairia do divã. Talvez, até as falas ecoassem em mim por bastante tempo e me fizessem perceber o que ainda não vi ou notei no caleidoscópico universo que é uma escola, lugar do imponderável e onde as subjetividades se interconectam ou chocam, nuances que jamais serão entendidas pelo neoliberalismo que só gera cegueiras, opressões e injustiças, levando as pessoas a se agredir, se empurrar para um abismo, combatendo-se sem saber, conforme também estava previsto nos versos de Vander Lee.
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.
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