Osvaldo Júnior: Bloco junino Apaixonadas do Forró mostra que, fora do patriarcado, há felicidade e abundância

Não sou muito chegado a festas públicas, mas fui, rapidamente, envolvido e, assim, pude notar nítida alegria nos rostos das mulheres, de diferentes faixas etárias, raças, classes e orientações sexuais.
"Decorridas mais de duas horas de música-dança-envolvimento, surgiu a percepção de que as mulheres são mais felizes sem os homens por perto". Foto: Beto Moura Produções

Fazia sol e a “marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu”. A natureza colaborou, escondendo a melancolia de seus dias nublados. Já não era momento de se experimentar uma felicidade clandestina, mas de desbravar a cidade, lançando, em suas veias, as energias já maltratadas pela ansiedade de festejar sem receios.

Logo que cheguei a Ribeira do Pombal/BA, confesso que estranhei ver o clima de São João acontecer à guisa de um bloco carnavalesco, com vestimentas avolumadas e chamativas. Acostumado com outros modos de vivenciar culturas nordestinas, a diferença fez que, inicialmente, não atribuísse tanta importância às festividades. Todavia, a famosa técnica do “boca a boca” acaba nos induzindo a averiguar o que anda badalando no interior da cidade. Não foram poucas as vezes que vi mulheres, em distintos lugares, que vão da farmácia a instituições de ensino, perguntarem umas para outras se sairiam nas Apaixonadas do Forró.

Como de praxe, minha curiosidade de cronista se recrudesceu. Queria, doravante, conhecer melhor aquela nuance do cotidiano. Assim, passei a nutrir uma vontade de ver uma festa organizada e celebrada por/com mulheres, longe da presença masculina que, em muitas ocasiões, faz a felicidade e seus desdobramentos ganharem asas. Por isso, acabei solicitando uma ‘autorização’ para marcar presença no evento e, alvissareiramente, fui contemplado com a permissão de uma das mentoras do bloco.

As Apaixonadas do forró agitaram uma cidade interiorana e, no dia 9 de junho/2024, “a minha gente sofrida, despediu-se da dor, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor”. Foto: Beto Moura Produções

Antes de sair de casa, pedi licença às deusas, porquanto as mulheres já estão cansadas de tanto ser descritas e observadas pelos homens. Aquela data, portanto, não poderia ensejar mais uma oportunidade para erguer olhares daqueles que, historicamente, as fustigaram, colocando-as em uma posição de subalternidade, da qual amplos esforços paradigmáticos e pragmáticos têm sido arregimentados para se tentar reverter essa situação.

Ainda indaguei bastante sobre minha ida ao bloco, mas como lançaria apenas um olhar a partir de uma experiência sensorial, resolvi me lançar naquele dia festivo. Desde que li Feminismo em comum, da filósofa Marcia Tiburi, quando o assunto envolve mulheres e seus quefazeres, venho adotando a postura ético-política da escuta, haja vista os argumentos já arrolados.

Ao chegar ao circuito, parece que uma energia divina nos enlaça e convida à celebração. Não sou muito chegado a festas públicas, mas fui, rapidamente, envolvido e, assim, pude notar nítida alegria nos rostos das mulheres, de diferentes faixas etárias, raças, classes e orientações sexuais. Ressalto que não falo, aqui, de qualquer sentimento de júbilo, mas de um regozijo por poder deixar de lado os trabalhos e seus ditames, bem como expressar, talvez, suas idiossincrasias, performances de dança, maneiras de se vestir/produzir, embaladas ao ritmo de músicas que nos convidam ao passo firme junto daquelas que estão ao nosso redor.

“Ressalto que, mesmo que tivessem enfrentado intensas chuvas, o barco-bloco das Apaixonadas não naufragaria, dada a potência do que mulheres unidas iriam fazer brotar dentro ou fora das cordas”. Foto: Beto Moura Produções

Encontrar senhoras com mais de 80 anos, em pé e festejando, foi uma experiência sui generis. Minha vontade era de entrevistá-las, a fim de identificar o que, além da experiência da alegria, as conduzia àquele circuito celebrativo. Afinal, elas podem não ser apaixonadas, necessariamente, pelo forró, mas por outro(s) motivo(s) oculto(s). Está aí um fecundo tema para uma pesquisa acadêmica de viés filosófico.

Decorridas mais de duas horas de música-dança-envolvimento, surgiu a percepção de que as mulheres são mais felizes sem os homens por perto. Com eles, como bem sinaliza Chico Buarque, “elas não têm gosto ou vontade, nem defeito, nem qualidade, têm medo apenas”. O patriarcado e seus dispositivos, infelizmente, conseguem arrefecer a liberdade feminina. Já o pensamento de erguer uma festa na qual elas podem estar unidas e se lançar nos circuitos sem receios dos julgamentos alheios nos mostra que o mundo feito com/por mulheres ganha outros contornos.

Apesar de não estarem todas ali, porquanto a participação demanda aquisição de um ingresso que concede a chancela para entrada nos circuitos, as mulheres presentes emitiram à população de Ribeira do Pombal um convite para se pensar a sociedade a partir do prisma da inversão de gênero. Saí com a ideia de que se elas substituíssem os homens nos postos de poder nos quais estes se encontram nossa tão combalida democracia estaria em outro patamar, em condições de lídima felicidade, por ver a cidadania concretizada sem segregações e disparidades dos mais diversos matizes.

Tenho, no braço direito, tatuada a figura de um rosto feminino e, dentro dele, uma pequena biblioteca sendo usada por uma mulher. Sempre que vou a uma livraria ou qualquer evento literário, faço, hoje, questão de adquirir, em primeiro plano, livros de escritoras. Trata-se de um gesto político em torno da valorização da intelectualidade feminina. Não bastasse isso, após vivenciar um show sinestético do bloco as Apaixonadas do Forró, fiquei ainda mais admirado com as belezas e exuberâncias que brotam nos corpos daquelas que trazem a energia e o ventre fundante da vida.

“Acabei solicitando uma ‘autorização’ para marcar presença no evento e, alvissareiramente, fui contemplado com a permissão de uma das mentoras do bloco”. Foto: Beto Moura Produções

Mulher é sinônimo de beleza, ousadia, sonho, transcendência e um longo etc. Sem a energia revolucionária que brota de cada uma, ficamos incompletos e flutuando em uma espécie de limbo terrestre.

Ressalto que, mesmo que tivessem enfrentado intensas chuvas, o barco-bloco das Apaixonadas não naufragaria, dada a potência do que mulheres unidas iriam fazer brotar dentro ou fora das cordas.

As Apaixonadas do Forró agitaram uma cidade interiorana e, no dia 9 de junho/2024, “a minha gente sofrida, despediu-se da dor, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor”. Ademais, a alegria retumbante dos rostos partícipes provocou a cintilação do real e, por corolário, “a moça triste que vivia calada sorriu, a rosa triste que vivia fechada se abriu, e a meninada toda se assanhou” com o mero intuito de “ver a banda passar cantando coisas de amor”.

Anseio que essa banda dure por todo tempo em que permanecermos na Terra, a fim de que a paixão pelo forró e por outras ‘coisas’ imponderáveis e não explícitas que levam a cidade a se enfeitar para “ver a banda passar cantando coisas de amor” sejam experimentadas com mais vigor, desejo e significação social.

PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.

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