Luciano Huck, o “Novo” Ensino Médio e o “esperneio dos inconformados”

A grande questão é que Luciano Huck e outras tantas pessoas, a exemplo de economistas e coaches educacionais, permanecem com mais prestígio do que aqueles/as que estão na universidade, principalmente nas públicas, às vezes há mais de trinta anos, estudando entrelaçamentos entre educação, sociedade e currículo.

A educação escolar dos filhos da classe trabalhadora é, constantemente, reestruturada em todos os seus níveis, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, num complexo jogo político e ideológico cujo objetivo, por parte da classe dominante e dos intelectuais a seu serviço, é o de assegurar que os conteúdos ensinados e aprendidos  na escola pública se limitem ao que é demandado pela reprodução da divisão social do trabalho e da concepção burguesa de sociedade, de conhecimento, de vida humana e de individualidade.

Newton Duarte, em Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos

Em virtude da abertura de um processo para análise do “Novo” Ensino Médio, divulgado, recentemente, pelo Ministério da Educação (MEC), tal política curricular voltou a ser alvo de polêmicas e intensas discussões nas mais variadas mídias, trazendo à tona posições ora alinhadas à esquerda, ora à direita, evidenciando um painel antinômico de concepções educativas e projetos societais.

No dia 3 de abril de 2023, foi a vez do apresentador de TV Luciano Huck lançar sua opinião sobre o que foi feito, de forma antidemocrática, na última etapa da Educação Básica. In verbis, assim se pronunciou “O Novo Ensino Médio deveria estar acima de diferenças ideológicas. Mesmo com difícil implementação, não faz sentido retroceder à estaca zero. O esforço para oferecer uma escola mais atrativa para os alunos e conectada com as suas expectativas de vida e carreira deve ser permanente”.

A celeuma foi tamanha que se criou uma espécie de argumentum ad hominem, ou seja, atacou-se, como de praxe, o autor, mas não seus argumentos. Ao ler a mensagem em redes sociais que não a de origem da publicação – o Twitter, voltei a pensar em uma categoria ético-político-filosófica que nos ajuda a refletir, (meta) criticamente, sobre a questão: o famigerado “lugar de fala”, tão bem discorrido por Djamila Ribeiro e, pari passu, muito mal interpretado por diversas pessoas no dia a dia.

Não tenho nada contra a pessoa de Luciano. Qualquer indivíduo, dentro de uma sociedade democrática, pode muito bem falar o que pensa, desde que tal pensamento não atinja o(s) limite(s) do(s) outro(s), ou seja, que respeite os contornos da alteridade. Só assim é possível viver de maneira harmônica e simbiótica. Acontece que tais manifestações de ideias podem, muitas vezes, não passar de meras ou ilusórias opiniões. Nesse sentido, a apreciação de Huck, a partir de seu lugar de fala, demonstra que projeto societal ele defende.

Já que a política curricular é vivida por professores/as, coordenadores/as, gestores/as, mantenedores/as e demais sujeitos que laboram na escola, por que aqueles/as que permanecem de fora se acham no direito de formular, influenciar e determinar o que deve ser trabalhado nas instituições de ensino?

Não se trata de meras “divergências ideológicas”, embora saibamos que elas movimentem a sociedade, afinal vivemos em classes antagônicas em si que não farão “as pazes” da noite para o dia. O “Novo” Ensino Médio anunciado pelo MEC a partir de 2016 é uma estratégia deliberada da classe burguesa para esvaziar a escola pública, desta elidindo saberes científicos, filosóficos e artísticos em nome de uma falaciosa pedagogia do empreender e do delineamento de um projeto de vida, o que, em outras palavras, retoma a ideia de Jurjo Torres Santomé de culpabilização e psicologização dos problemas sociais. No fundo, o NEM é engodo e mera ilusão mistificatória que só favorece uma elite do atraso, a qual critica a mediação de conteúdos para classe trabalhadora, mas os insere ou amplia, em escolas particulares, por meio de itinerários formativos complementares.

O próprio discurso do apresentador de TV é ambíguo em si. Se analisado de forma acurada, veremos que uma política de “difícil implementação” em um país com 5.568 municípios precisa, urgentemente, ser demolida. Não será a política do velho MEC que tornará as escolas mais atrativas e conectadas com as expectativas de vida e da carreira, visto sermos um país que pouco avançou no alcance das metas/estratégias exaradas no PNE 13.005/2014 e que vive a partir das determinações da Emenda Constitucional n. 95, instituída sob a égide da “economia”, levando os governos a sérias restrições orçamentárias em campos essenciais (saúde e educação).

Nesse interregno, pressionado por diversos setores – tanto da direita quanto da própria esquerda progressista – o presidente em exercício anunciou que fará reformulações com vistas à melhoraria da proposta do “Novo” Ensino Médio. Se Lula ouvir Luciano Huck e companhia, já sabemos que caminhos iremos palmilhar.

Confesso que não fiquei nada contente com a portaria que suspendeu a “implementação” do “Novo” Ensino Médio e das diretrizes do ENEM pelo prazo de sessenta dias, tempo em que seriam “ouvidas” as “pessoas”. Afirmou o ministro da educação, conforme dados constantes no site da Carta Capital, que “todos” seriam escutados, mormente “quem está lá na ponta, que são os alunos, os professores e aqueles que executam a política”. Mas antes de ouvir, já se tinha uma “sentença” firmada a priori: a política não será revogada.

Defendo a tese, assim como o pesquisador Dr. Fernando Cássio, que o NEM é irreformável e inegociável, pois não traz benefícios para classe trabalhadora e só torna mais abissais as clivagens existentes em nosso país. Se, de fato, a política de “consulta democrática” funcionasse, o governo do PT iria ouvir de associações, entidades e pesquisadores/as comprometidos/as com uma educação pública laica e emancipatória, que tal política necessita, urgentemente, ser desativada. Embora tenha sido feito um investimento muito alto, tanto financeiro quanto pedagógico, continuar com ela é insistir em um erro que dividirá cada vez mais os/as brasileiros/as entre aqueles/as que frequentarão uma escola de elite e os/as que estudarão em uma instituição vazia e pobre de conteúdos clássicos eleitos como formativos.

A grande questão é que Luciano Huck e outras tantas pessoas, a exemplo de economistas e coaches educacionais, permanecem com mais prestígio do que aqueles/as que estão na universidade, principalmente nas públicas, às vezes há mais de trinta anos, estudando entrelaçamentos entre educação, sociedade e currículo. Na atual conjuntura, mais valem as meras opiniões (doxa) da classe burguesa do que as pesquisas (episme) que vêm sendo produzidas em ambientes acadêmicos. Enquanto isso continuar acontecendo, não avançaremos muito no “debate” e o “esperneio dos inconformados”, expressão usada pelo Jornal Estadão, continuará porque assentados em uma lógica educacional que não se contenta com o pragmatismo a-histórico a que são submetidos os conteúdos escolares pela pedagogia das competências, mas buscam uma escola comprometida com a esperança transformadora do status quo e com a emancipação em seus múltiplos vieses.

PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.

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