“Hoje, consumir a cultura nordestina é uma tendência”.
Celson Junior
Celson Nascimento Junior, 38 anos, nascido e criado em Euclides da Cunha, Bahia. Esse é o cara, ou melhor, o empreendedor à frente da marca e loja Casebre de Palha, que estampa o Nordeste e busca dar visibilidade à cultura local e regional.
A ideia de criar a Casebre de Palha nasceu entre 2014 e 2015, de uma inquietação de Junior em relação a uma marca de roupa de Salvador, que ele conhecia e vestia, e que trabalhava na estética a cultura nordestina. “Era uma marca que, de fato, representava, mas faltava algo para mim. Uma estampa que falasse mais do local, o sertão do Conselheiro, Canudos, Uauá, Monte Santo, Euclides…”
Foi então que ele desenhou a marca e começou a produzir algumas estampas de forma não comercial, para consumo próprio, e a partir de um convite, em 2017, para expor em um evento, a ideia ganhou forma. Ele produziu e levou 40 camisas, de quatro estampas diferentes, que abordavam, por exemplo, trecho da música Caatinga, do cantor e compositor baiano, Rivelino Rocha, e Maria Bonita e Lampião. Com o sucesso da empreitada, ele tomou gosto e percebeu que poderia transformar aquilo em um negócio e levar a ideia para mais pessoas. “Eu senti ali que era algo que eu poderia dar continuidade. Dei o primeiro pontapé e chegou aonde nós estamos hoje”. Depois, ele foi participando de outros eventos e feiras e divulgando a marca. “Eu vendi algumas camisas aqui na cidade, como sacoleiro mesmo, não tinha espaço físico, não tinha nem redes sociais estruturadas ainda”, lembra.
Em 2018, as vendas aumentaram, o “sacoleiro” se animou ainda mais e iniciou o processo para profissionalizar a produção. “Ganhou uma musculatura, a marca se expandiu, já tinha pensado em redes sociais. Foi uma loucura porque teve uma procura muito grande e ali eu senti que já tinha que pensar 2019”. Daí pra frente, a marca caiu na graça popular.
As estampas da Casebre de Palha falam sobre forró, arara-azul-de-lear, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Marinês, Lampião, Maria Bonita, Renan Mendes, Rivelino Rocha, Pedro Sertanejo, dentre outros, além de evidenciar elementos da cultura nordestina, como o cacto, mandacaru, o cuscuz, e outros mais locais, como a Igreja da Santíssima Trindade, construída por jesuítas e franciscanos na Aldeia Indígena Massacará, no município, datada de 1614, umas das primeiras da Bahia.
A escolha de fazer o recorte para a cultura nordestina e sertaneja nas peças vai além de uma estratégia de negócio, tem muito mais envolvido. “A Casebre é o espelho da minha alma. Você vê a Casebre e entende um pouco da minha personalidade, de quem é o Junior, do que eu penso em relação ao mundo, à cultura, à política. Eu tento, a todo momento, inserir aquilo que eu acredito”.
Para ele, não se trata só de ganhar dinheiro, e lembra que, inclusive, já abriu mão de produzir estampas que lhe renderiam bom retorno financeiro, para manter a essência da marca. “Não é isso, né? São princípios, são tantas outras questões que perpassam por mim na hora de pensar uma estampa, esse cuidado que eu tenho, esse carinho”.
Junior destaca, também como diferencial, o fato de os produtos da loja serem produzidos por muitas pessoas, e a singularidade das estampas. “Ela é uma marca pensada por uma pessoa, mas também é uma marca coletiva, construída por muitas mãos. Uma marca contemporânea, versátil, que dialoga com todos os segmentos, de jovens à terceira idade, e, sobretudo, é uma marca que dialoga com esse nosso sertão do Conselheiro. O diferencial está nisso, de a gente abraçar essa nossa história e levá-la para um lugar de protagonismo através desse trabalho”.
A abertura da loja física em 2019
Junior se lembra da data exata da inauguração: 14 de junho de 2019, em pleno clima de São João. A época não podia ser melhor. Inicialmente, a ideia era ser uma loja colaborativa, que contasse também com produtos de artistas e artesãos da região. “Foi incrível, ter esse contato pessoal, de poder vir na loja, ter esse bate-papo com os clientes, conversar, explicar a ideia, o projeto”.
Tudo ia bem, mas no meio do caminho tinha uma pedra chamada pandemia de Covid-19. Naquele momento, Junior ainda pagava as despesas provenientes da abertura da loja física, e teve que se desdobrar para não se tornar mais um número dentro das estatísticas lamentáveis de fechamento de empresas. Segundo o levantamento realizado em 2020 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), através da Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas empresas, 1,3 milhão dos negócios que na primeira quinzena de junho estava com atividades encerradas de forma temporária ou definitiva, 39,4% apontaram as restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus como causa. “Foi um processo que, enquanto marca, passei por um momento muito difícil”, lembra Junior.
Na época, além das despesas pendentes, a Casebre de Palha contava com um funcionário fixo e teve que fechar as portas por 45 dias, e a queda no faturamento foi inevitável. A renda que ele tem de um trabalho como servidor público no município foi quem ajudou a manter as coisas em dia. “Um momento de resiliência, de se fortalecer. Foi um processo um pouco turbulento, como para todos que estavam empreendendo naquele momento”.
Mesmo diante das dificuldades e incertezas impostas pela pandemia, o espírito empreendedor de Junior se uniu ao sentimento de solidariedade. Apesar de estar com as portas fechadas, a Casebre de Palha seguiu com a produção em alta, mas não eram só camisas que estavam sendo confeccionadas, eram máscaras para serem doadas. Além de Euclides da Cunha, os municípios de Canudos e Uauá foram beneficiados com a atitude solidária da marca.
O nascimento da loja virtual
Se a pandemia trouxe uma série de desafios, é verdade também que ela proporcionou aos pequenos negócios experimentar novas e ilimitadas possibilidades no mundo digital. Enquanto muitos empresários só viam problemas, Junior enxergava oportunidades de crescimento para a empresa. Das redes sociais, a Casebre de Palha deu um salto para a loja online, seguindo a tendência que acontecia em todo o país e no resto do mundo naquele momento. O Índice de Transformação Digital da Dell Technologies 2020 (DT Index 2020) apontou que “cerca de 87,5% das empresas instaladas no Brasil realizaram alguma iniciativa voltada à transformação digital” no ano em que o Brasil registrou o primeiro caso de coronavírus. O número, segundo a pesquisa, ficou acima da média mundial, que é de 80%. Outro estudo, a Presença Digital, realizado pela multinacional HostGator, ouviu mais de cinco mil empresas e, destas, “58% passaram a investir mais no digital durante a pandemia e, dentre essas, 64% perceberam consequente aumento nas vendas por esse formato”.
Esses dados podem ser visualizados e confirmados através do negócio do Junior. Desde que ampliou e consolidou sua presença online através do site, a loja tem alcançado números cada vez mais altos. No mês de maio deste ano, por exemplo, já teve venda concretizada para Brasília, São Paulo e Rio Grande do Norte. “Recebi meu pedido, fiquei encantada com a qualidade dos produtos e capricho nos detalhes. Eu amei a proposta de vocês”, relatou Cris Duarte, cliente de SP.
Junior não consegue esconder a satisfação e orgulho ao falar para a gente sobre esse feedback recebido. Para ele, poder levar a marca para além das fronteiras locais e regionais tem um sabor especial. “Do nada, a gente chega lá e tem aviso no e-mail de uma venda, então tem essa característica de chegar onde não tem uma loja física. É fundamental, hoje, para quem quer empreender e pensar em crescimento também”, afirma ele sobre a presença no universo digital.
E os avanços não pararam por aí. Se lá no início não deu muito certo a disponibilização de produtos de outros profissionais na loja, isso não afastou de Junior a visão que ele tem sobre a importância, relevância e força dos espaços colaborativos. “A gente começou a ver outras perspectivas, que era, justamente, pensar a marca Casebre em outros espaços. Aí a gente partiu para as lojas colaborativas”, lembra. Bingo! Em pouco tempo, os produtos da marca euclidense já estavam disponíveis, também, na cidade de Cruz das Almas, e, logo em seguida, Feira de Santana, Juazeiro e, mais recentemente, Praia de Pipa (RN) e Recife (PE).
As vendas provenientes das lojas físicas, incluindo a “matriz” em Euclides da Cunha, representam, segundo Junior, de 70% a 80% do faturamento atual.
Mais que uma marca, uma afirmação de identidade e pertencimento
Junior tem consciência e reconhece que a Casebre de Palha desempenha um papel fundamental no processo de divulgação e valorização da cultura local, regional, sertaneja e nordestina. Ao dar visibilidade a personagens e elementos icônicos, porém ignorados ou sufocados pela cultura de massa e industrializada, a marca tem contribuído para uma mudança no perfil das pessoas que a usa e incentivado a construção de uma realidade diferente.
“Se a gente pensar o perfil dois, três anos atrás, era diferente. Eu acho que hoje já se monta um outro perfil, porque as pessoas passaram a ter consciência e entender qual é o papel da marca e o que ela quer por trás desse produto. Então, a gente entende, hoje, que as pessoas já têm consciência daquilo que estão comprando e vestindo”, avalia Junior.
A atriz euclidense Ana Caroline Santana, ou arteira, como a própria se descreve, é uma apaixonada pela Casebre e a usa desde que o CEO era apenas um sacoleiro cheio de ideias. “Penso que a marca representa a essência do nosso sertão, a partir de um viés muito bonito, sempre lançando estampas com grandes referências que permeiam sobre as mais diversas linguagens artísticas, característica que muito me enche os olhos, e me possibilita carregar, sempre comigo, uma forma bonita de expressar o orgulho de ser do sertão”.
Dentre as estampas que evidenciam personagens de grande relevância, mas até então estranhos ao grande público, está a de Pedro Sertanejo, compositor e acordeonista euclidense. Embora pouco conhecido em sua terra natal, Euclides da Cunha, ele tem uma grande relevância no cenário musical nacional e é considerado por muitos o responsável por introduzir a cultura do forró em São Paulo, onde fundou uma casa de show dedicada exclusivamente ao estilo musical e por onde passaram nomes como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Zé Gonzaga, Marinês e Dominguinhos. Ao longo de sua carreira musical, Pedro Sertanejo lançou mais de 40 discos e compôs, aproximadamente, 700 músicas.
Segundo Junior, essa é a proposta da Casebre desde que ela foi iniciada. “Essas estampas trazem para essas pessoas o sentimento de pertencimento, é algo que, às vezes, a gente não consegue nem dimensionar o valor real daquilo que é vendido ali”.
Em parceria com o poeta e cordelista euclidense Inamar Coelho, Junior está formatando um projeto denominado “Nossos símbolos, nossa história”, que pretende colocar nas ruas, de forma prática, muito sobre a cultura local. Cada pessoa que comprar um produto da loja vai levar, de brinde, um cartão contendo a foto de um personagem e sua história, contada em cordel.
Os desafios de ser um empreendedor
Filho de uma empreendedora, proprietária de uma fábrica de costura na cidade, foi no negócio da mãe que Junior teve contato com a área de camisaria e, aos 13 anos de idade, com a serigrafia, um processo de impressão à base de estêncil (lâmina) e tinta vazada.
Foi nessa época que ele passou a ajudar a mãe, na prática, secando camisas e, após o afastamento de um funcionário, passou também a fazer pintura. Seu “estágio” durou sete anos. “Foi importante porque eu tive o conhecimento mais técnico da coisa, de malharia, processo de serigrafia”. Depois de uma temporada fora de Euclides da Cunha, seu retorno coincidiria com a entrada no mundo do empreendedorismo.
Quando perguntamos a ele sobre como é o desafio de ser um empreendedor, ele não tem dúvidas. “Administrar uma empresa já é uma outra realidade. Para mim, é algo muito novo, ainda estou em processo de construção, aprendendo, errando, acertando”, confessa.
Como tantos outros milhares de empreendedores do país, Junior tem ciência que os desafios são constantes. “Eu sempre falo que o que eu não posso fazer é romantizar o empreendedorismo como muitos coaches fazem por aí. É um processo árduo, e eu falo isso baseado em estatística. As empresas que abrem, a maioria delas dura um, dois anos, as que conseguem passar disso aí, muitas estão aos trancos e barrancos, mas estão dando continuidade”.
Ele tem razão. Segundo o Mapa de Empresas, do governo federal, no ano de 2023 quatro empresas fecharam a cada minuto no país. Foram mais de 2,1 milhões de negócios extintos, contra 1,7 milhão em 2022. Nesse cenário, microempresas e empresas de pequeno porte foram as que mais sofreram. As empresas registradas como MEI (Microempreendedor Individual), que é o caso da Casebre de Palha, têm a maior taxa de mortalidade entre os pequenos negócios: 29% fecham após 5 anos de atividade, aponta estudo realizado pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
Junior cita como uma das dificuldades as altas taxas praticadas por instituições financeiras no acesso ao crédito. “O único que eu fiz durante todo esse processo foi na pandemia, e eu optei por fazer um consignado porque era aquilo que tinha uma taxa mais acessível, mais em conta”, explica. Além disso, ele fala sobre a alta taxação nas compras parceladas. “Hoje a gente vai vender uma camisa aqui, e poderia vender por três, quatro, cinco, seis vezes sem juros, mas é inviável, dependendo do valor”.
Ele defende como estratégia para estimular o surgimento de novos empreendedores e abertura de pequenos negócios como o dele inserir na grade curricular das escolas públicas disciplinas voltadas ao empreendedorismo e à educação financeira. “É muito mais interessante do que as pessoas ficarem atrás de coaches, esses vendedores de sonhos que muitas vezes romantizam o empreendedorismo. A educação, hoje, pode ter esse papel de contribuir, dar esse suporte na escola, e aí elas terão a base e vão entender se é o caminho ou não”.
Visionário, Junior formalizou o negócio logo no início das operações, em 2018, mesmo antes de abrir a loja física. Desde então, a Casebre de Palha é registrada como MEI, atualmente a forma mais simples de o empreendedor se formalizar e possuir um CNPJ. Em abril de 2024, a Receita Federal computava um total de 1.403 MEIs ativos no município de Euclides da Cunha.
De acordo com o Sebrae, através dessa modalidade o empresário tem várias vantagens, como “emitir notas fiscais com facilidade, abrir uma conta empresarial e ter acesso a empréstimos com melhores taxas de juros”. Além disso, acrescenta a entidade, o empreendedor, como o Junior, “pode contribuir para a aposentadoria e receber benefícios de seguridade”.
Atualmente, cerca de 10 a 15 pessoas são envolvidas no processo de fabricação de cada peça, desde a concepção da arte da estampa ao processo final de venda na loja. As camisas que têm ajudado a transformar a realidade local também são responsáveis por gerar trabalho e renda para muitas famílias.
Além dos produtos assinados pela Casebre de Palha, é possível encontrar na loja artefatos artesanais como sandálias de couro e bolsas importadas do Sertão do Cariri e canecas de barro e quadros de Juazeiro do Norte (CE), todos produzidos por artesãos que Junior conheceu nas andanças pelo Nordeste. “A gente entendeu que poderíamos enriquecer um pouco mais trazendo produtos que dialogassem com a marca, com a proposta”.
Empreender é inovar sempre: a nova identidade visual da marca
A inquietação é uma das principais características de um empreendedor, e isso a gente nota, de sobra, no perfil do jovem à frente da Casebre de Palha. Mesmo com a marca já consolidada local e regionalmente, ele decidiu mudar e repaginar a identidade visual, de olho em novos mercados e para aperfeiçoar o processo produtivo, mas sem perder a essência. “A ideia é alcançar os nove estados do Nordeste, ter lojas representando a marca. Hoje, nós estamos em três estados, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia”.
Para um futuro não tão distante, ele vislumbra uma loja física maior em Euclides da Cunha, onde possa ampliar a presença de artistas e artesãos, e a variedade de produtos, principalmente os oriundos da agricultura familiar. A proposta é que as pessoas tenham uma experiência de contato com a história. “O meu sonho hoje seria isso aqui. Eu estaria realizado se tivesse um espaço que eu conseguisse fazer isso”, conta.
Enquanto conversava com Retratos e Fatos, Junior já organizava, também, detalhes de uma reforma que fará na loja logo após o São João, com a nova roupagem. Ele pretende, ainda, nos próximos meses, migrar de MEI e mudar a classificação da empresa. “A gente entende que a marca vai crescendo e precisa dar novos passos”.
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