Não sou escravo de ninguém
Ninguém senhor do meu domínio
Sei o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz […].
Legião Urbana, em “Metal contra as nuvens”
Pensei muito ao escrever este texto. Confesso que experimentei um movimento pendular linguístico sem precedentes. Não sabia, ao certo, se lançaria algumas palavras na data escolhida, tradicionalmente, para se “celebrar” o dia do/a professor/a, meus/minhas colegas de travessia profissional. Notei que tratar de algumas questões espinhosas de forma exaustiva seria desgastante ou até mesmo inoportuno para o momento. Nesse sentido, articulei diversos títulos, a iniciar por um cuja ideia foi furtada de uma palestra mediada pelo insigne Prof. Dr. Vitor Henrique Paro (USP), segundo o qual a classe docente precisa, urgentemente, “sair do armário”, mas como não é de bom tom falar disso de forma genérica e superficial, dada a abrangência temática, problemas e contradições que envolvem a questão, resolvi abrir mão dessa seara.
Não sei se por coincidência, ao tentar reunir estas palavras, alguém que estava ao meu lado perguntou à Alexa a previsão climática. Surgiu, portanto, um insight, uma nova epifania: iria perguntá-la sobre a quantidade de likes que um/a professor/a necessita ter para angariar aceitação pública com seu trabalho. Elucido, com a devida acuidade, a questão, ou melhor, o gesto ético-político a que me propus: problematizar uma cena, no mínimo, absurda.
Há pouco tempo, um estudante me marcou em uma rede social. Percebi que se estava envolvido em uma votação para escolher o “melhor” professor de literatura do ano. Tratava-se de um chamamento “irrecusável” ao triunfo, o qual seria partilhado diante dos holofotes da sociedade do espetáculo. Estranhei o método: como selecionar e hierarquizar sem conhecer minhas aulas, as didáticas e estratégias avaliativas adotadas? O link da votação poderia ser espalhado para qualquer lugar do Brasil, ou melhor, do mundo e, caso tivesse a maior quantidade de votos, receberia um “prêmio”: uma placa certificadora, entretanto esta só viria para minhas mãos se eu pagasse por ela.
Humildemente, agradeci pela lembrança do aluno e segui, pensando em muitas condições anódinas que envolvem a classe docente, a qual, se lutasse para “sair do armário”, como bem sinalizado pelo aludido professor Vitor Paro, certamente não passaria por essas situações vexatórias e destituídas de valor educacional. Aceitar o compartilhamento da proposta seria negar minha capacidade crítica e me sucatear intelectualmente. Ao invés de bem-estar, promoveu-se o seu avesso. Não sei se, com minha decisão, o discente deixou de me seguir. Também não tenho medo disso ou qualquer trauma.
A situação é similar a de muitos/as colegas que laboram em unidades particulares de ensino, nas quais a presença de imagens no Instagram, nas famigeradas datas “comemorativas”, costuma contar mais do que aprendizagens críticas e formadoras de subjetividades que respeitam, genuinamente, as múltiplas alteridades e os encontros dialógico-generativos com os outros que habitam nosso vasto mundo. Nesses locais, mais importa aparecer do que se envolver em atividades pedagógicas criativas e heuristicamente fecundas. Assim, cenas banais que vão do lanche a um simples pulo, vão deixando as redes sociais mais coloridas e, com essa discursividade, erguem cenas no imaginário social que podem não corresponder às dinâmicas reais cotidianas, porquanto alguns feixes são escamoteados, propositalmente.
Parece que a “moda” de divulgar nomes na cibercultura, a fim de colocá-los em uma lista dos/as “melhores”, deseja virar tradição e se hegemonizar, embora traga, dentro de si, uma grande falácia. O mercantilismo tenta nos reificar e, ao mesmo tempo, não fica cego diante das possibilidades de lucrar com os vacilos que damos, mesmo estando imersos a atos críticos de (re)construção de saberes e experiências. Por isso, criam-se classificações de “ouro” e distinções educacionais através de uma suposta “objetividade comunicativa” vista como “elegante” por quem a elaborou, mas se configura como antagonicamente implausível se considerarmos as metamorfoses que elas aparentam criar.
A cultura dos likes exige poucos neurônios e se esparrama no mass media, colocando diversos/as cidadãos/ãs em uma nova necessidade de maniqueísmo que determinará o alcance de um título, caso se pague um valor monetário por ele, é óbvio. Diga-me quantos likes tens, professor/a, e te direi quem tu és no mercado de trabalho. Só que não! Nesse ínterim, caso tenha ampla votação, forja-se uma cultura profissional que traz, em seu bojo, uma apoteose da “qualidade”, mesmo que nem se conheça quem está sendo votado/a. Os resultados disso também criam, simbólica e discursivamente, por meio de suas variadas semioses, um efeito persuasivo e de marketing de um grupo que recebeu o atestado de uma pesquisa cujos métodos, resultados e desdobramentos são assaz conflitantes, questionáveis e passíveis de deturpação/manipulação. O consenso falsificado se apropria de uma questão assaz complexa e multifacetada – a identidade docente – para fazer emergir um simulacro que nada condiz com uma ideia de educação como prática política em busca da liberdade.
Fico a me perguntar: será que o abismo tende a crescer e precisaremos dos “tons, seus mil tons” para escapar dessas trevas? Minha indignação aumenta quando vejo esse tipo de cena vicejar em contextos que lidam com a formação da subjetividade humana por meio de projetos curriculares. Às vezes, por sorte, há os que mudam de opinião para com esse grave equívoco. Em outras ocasiões, os caminhos costumam se bifurcar: de um lado permanecem os/as que consideram tal atitude um avilte; do outro, os/as que se locupletam com ela por terem pouco a oferecer, em sala de aula, de capital cultural, mas, para viver no mercado, necessitam estar no pódio, carecendo do aceite e da cultura retórica daqueles/as que garantem a primazia do adorno virtual em detrimento daquilo que representa a essência de uma boa educação. Diante do vazio, é preciso erigir um título que “autoriza” e ramifica uma identidade profissional como viável, digna do olhar e da atenção dos/as que usam as redes sociais e de lá captam “verdades” da vida que serão usadas em jogos de linguagem cotidianos.
Parece que falei demais e deixei o “dia” dos/as professores/as de lado. Perdoem-me o “desabafo”, mas precisava desse vômito de linguagem que nos conduz a uma reflexividade. Se você, professor/a, recebeu um título desse, espero que passe a refletir sobre o poder e o pouco alcance que ele possui. Pense se isso é, de fato, um reconhecimento em alusão ao seu trabalho que muitos/as dizem que “pode até mudar o mundo”.
Convido-te a rasgá-lo e não entrar mais nessas ciladas. Não seria melhor usar o valor pago por ele, que deveria ser um presente, já que se trata de um ato simbólico de reconhecimento, para comprar bons livros e com estes aprimorar sua formação continuada, condição sine qua non de seu exercício profissional? Destarte, ganhará você, os/as alunos/as com os/as quais convive, a escola e a sociedade. Com likes, você poderá até se tornar mais pop no mundo volátil das redes, mas com boas obras se aprimora a subjetividade e o olhar para o que é essencial. Mas vale ser cult. Os/As que não ganharam o título, fiquem tranquilos/as, não se trata de demérito, afinal vocês não foram convidados “para uma festa pobre”, mas, certamente, continuam acreditando nas causas da educação, mesmo que alguns fios de esperança estejam se rompendo em meio à algaravia cotidiana e aos turbulentos dilemas e conflitos vivenciados. Se ainda continua empedernido pelo ouro de tolo, sugiro uma terapia. O divã te espera de braços abertos e a Alexa não poderá te ajudar, infelizmente, com notícias alvissareiras.
Preciso fazer um teste no famoso dia 15 de outubro. Perguntarei, também, à Alexa se tem algum lembrete importante para essa data de luta em prol de melhores condições de nossos quefazeres. Na sociedade em que vivemos, muitos/as são, de fato, professores/as. Outros/as ainda não se encontraram, estão dentro de um labirinto e se tornam “sofressores”. Outros/as tantos/as permanecem alienados/as em demasia, mesmo que esta condição atente contra a própria classe que os/as representa. Se a Alexa responder “dias de luta, minutos de glória”, começarei a pensar que a Inteligência Artificial Generativa está, de fato, ficando inteligente.
Apesar de tantos desalentos e das pedras no caminho, é preciso seguir com os preceitos poéticos drummondianos: sempre juntos/as, com sororidade, para que possamos enfrentar as neblinas perversas da desvalorização de classe que, historicamente, nos apavoram e tentam, a todo custo, obnubilar nossas retinas, demover a ideia de um devir utópico e declinar nossas ações em busca de mundo mais justo, equitativo, repleto de pessoas genuinamente emancipadas, com as quais nossa história não ficará pelo avesso, “assim, sem final feliz”, pois “teremos coisas bonitas pra contar”.
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.
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