Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.
Valter Hugo Mãe
Pela natureza de sua profissão, professores agem contra a mistificação e o dogmatismo como sujeitos do conhecimento que são. Não há, portanto, profissão mais perigosa ao projeto de imbecilização do mundo que é parte essencial do programa neoliberal atual.
Marcia Tiburi
O magistério enquanto categoria profissional é, sem sombra de dúvidas, um caminho de emancipação, aqui concebida em seus múltiplos vieses. Já na Educação Infantil, vivenciada em creches e pré-escolas, se iniciam os primeiros gestos que nos conduzem a processos (co)formativos com os quais agiremos em prol da sociedade e dos pequenos grupos que fazemos parte. Em outras palavras, docentes semeiam utopias e amanhãs. São, portanto, os(as) professores que nos propõem um convite à curiosidade, ao espanto filosófico, à alegria sinestésica e, dentre inúmeras outras nuances, lançam-nos nos mundos da linguagem e da imaginação, deixando marcas indeléveis e fazendo-nos aprender a decodificar semioses e, por corolário, a decifrar os sentidos e enigmas cotidianos. Com eles(as), aprendemos a contemplar a eterna novidade do mundo e a (con)viver no espaço dinâmico, acontecimental e revolucionário que caracteriza uma sala de aula crítico-reflexiva.
Desde criança, lembro-me que nutria intenso apreço e admiração pelos(as) professores(as). Nesse sentido, era comum brincar de escrever provas em pequenos pedaços de papel retangulares para, em seguida, corrigi-las com caneta vermelha, como se fosse um profissional devidamente habilitado. Aquilo, à época, tinha muito sentido simbólico. Mesmo sem dominar qualquer teoria pedagógica, já notava o quanto um(a) professor(a) trabalhava no desenvolvimento de subjetividades. Era uma experiência física e também metafísica, futuramente imbuída de facetas pragmáticas, políticas e epistemetodológicas que passaria a conhecer e conviver posteriormente, depois de ingressar em ambientes universitários.
Hoje, depois de mais de uma década de profissão e intensos estudos/leituras, sempre que chego ao famoso dia 15 de outubro, passo a refletir, (meta)criticamente, sobre o mal-estar neoliberal que impera em contextos educacionais, sufocando-nos, e acerca da condição profissional que abracei em minha existência. Outro dia, descobri, em um credenciamento de um congresso virtual, que poderia inserir, na categoria profissão, o nome “escritor”, mas sempre que sou convocado a este ato, prefiro assumir minha postura (po)ético-político-pedagógica: uma vez professor, para sempre professor. Já até pedi, em certa ocasião, que, na capa dos meus livros, não aparecesse apenas meu nome e sobrenome, mas a abreviatura “prof.”, solicitação negada pela editora. Entendi os motivos técnicos, mas ainda continuei com minha vontade. Quando alguém lê minhas obras, lê escritos do Prof. Osvaldo Júnior, porquanto nossas identidades sempre se plasmam e se (con)fundem.
Recordo-me que, antes de cursar Letras e, na sequência, Pedagogia, lia muitos escritores(as) que falavam sobre a condição docente em uma roupagem muito utópica, romântica e idílica. É indiscutível que ser professor(a) açambarca uma série de gratificações (atualmente mais afetivas e relacionais do que, inclusive, financeiras), mas não podemos nos esquecer dos desa(fios) historicamente enfrentados e que colocam a profissão em situações de vilipêndio. Por isso, a descoberta de Paulo Freire foi um grande lenitivo.
Só para se ter uma ideia, é preciso mencionar que os(as) mesmos(as) agentes políticos que sucateiam/esvaziam a luta docente e negaram o aumento do piso salarial da categoria em 2022, o que impulsionou a movimentos grevistas e (in)tensas paralisações, geralmente são aqueles(as) que, no dia 15 de outubro, espalham cards e outdoors dizendo para toda população o quanto amam o(a) professor(a). É um cenário tórrido de cinismo e má fé usado como mistificação ideológica para angariar a fama de que estão ao lado dos(as) idealistas que se dedicam, de corpo e alma, a educar pensando em uma tríade temporal: no passado (em se tratando de memórias necessárias), no presente e no futuro das gerações com as quais laboram.
Esses dias, passei em direção a uma cidade do interior da Bahia e visualizei um outdoor que desvelava o avanço do IDEB. Advinha quem estava estampado na imagem? O prefeito, o vice e o atual secretário de educação. Tudo bem que as políticas perpassam pelos cargos de gestão administrativa e financeira, porém nada mais justo do que inserir uma foto de professores(as) em ação, sujeitos que, diante dos atos de currículo instituídos e instituintes, fazem da escola um lugar de (meta)criação cultural e aprendizagens fecundas/transdisciplinares para crianças/adolescentes/adultos, muitos(as) em situação de intensa vulnerabilidade socioeconômica.
Na instituição onde trabalho, nas vésperas do dia dos(as) professor(as), a equipe pedagógica foi homenageada com poesias, discursos e um momento de confraternização. O mais interessante é que tudo foi feito pelos(as) estudantes da EJA, os(as) quais menos têm condição financeira de arcar com os custos de uma festa comemorativa. Também fizeram lembrancinhas personalizadas. Talvez até pediram dinheiro emprestado. Alguns disseram que nós representávamos a segunda família, à qual deviam respeito e veneração. Ficamos todos(as) surpresos com o gesto simbólico pensado e urdido por aqueles(as) que poderiam arrolar inúmeras desculpas para nada ou pouco fazer, mas a causa social e afetiva teve primazia. No grupo de WhatsApp, disse aos(às) colegas de profissão que os(as) agentes políticos deveriam assistir àquelas cenas e perceber o que fazemos, cotidianamente, com os(as) que estudam e aprendem conosco em processos intercríticos de descobertas pedagógicas.
Dia 15 de outubro não pode virar uma mera data “comemorativa”, tal como tantas outras cujo teor apoteótico é efêmero e não dá conta do que precisa dar. As agruras, uberizações e esvaziamentos com os quais convivem muitos(as) professores(as) por este Brasil afora não serão solucionados com homenagens vagas, por vezes mentirosas e reducionistas, dos(as) que ocupam espaços de poder, nos quais, inclusive, são gestados documentos de teor legal que desmancham planos de carreira e direitos conquistados com muitas e árduas lutas.
Sem educação (meta)crítica voltada à construção de ideais emancipacionistas, ficaremos sempre à deriva e, certamente, abraçaremos a barbárie. Não nos resta outra saída: ou se investe na maior categoria profissional do Brasil, ou trilharemos descaminhos pejados de desumanização, conflitos, brutais violências e elogio à morte. Não estou a dizer, com isso, que a educação, sozinha, tudo pode, até porque, como se espalha por aí erroneamente, penso, na contramão, que professores(as) não são pops, não são techs, não são agro, não são tudo. Docentes são seres de carne e osso que, em meio aos cenários de contradição em que vivem, lutam, política e pedagogicamente, para construir uma sociedade menos desigual, onde haja mais esperança e equidade. A pandemia COVID-19 mostrou, por exemplo, o quanto dispositivos tecnológicos estavam distantes de muitas práticas escolares e o fato de que a inalteração das condições materiais imanentes ao trabalho institucional das unidades educativas é uma situação que interfere no fiel cumprimento dos objetivos da educação.
Para mim, o mais bonito, na educação é, além do tornar-se quem somos (autodescoberta), reconhecer a alteridade, a capacidade de ser outro e encontrar/olhar os outros, inclusive os outros de nós mesmos. Sair encabulado de uma aula-diálogo, pensando que poderá ser e agir de forma diferente não tem preço. É uma recompensa inenarrável descobrir que existem sempre outras perspectivas com as quais se pode esquadrinhar/compreender a realidade. Cinquenta minutos de aula podem gerar versões humanas surpreendentes. Por isso, a cada vez que visualizo as distopias e o recrudescimento do neoconservadorismo brasileiro, penso que preciso, na condição ético-profissional de professor, mediar aulas da melhor maneira possível, agindo à revelia do ethos distópico que hoje vigora, por entender que, dentro de uma sala, se tem veredas que podem conduzir a aventuras intelectuais em torno dos conhecimentos historicamente acumulados, com os quais é possível, crítica e criativamente, reinventar a vida e refazer, da melhor maneira possível, as sociedades.
Quem massacra a classe social dos(as) professores(as) é digno de comiseração e precisa, inclusive, de intensa terapia e sessões de Psicanálise, pois nutre, dento de si, ideias/desejos tanáticos de destruição daqueles(as) que buscam ver, nos olhos de crianças, adolescentes ou adultos, o brilho do espanto diante do contato com os saberes e suas ancestralidades. Como bem diz uma frase que vi não sei onde, mas que considero legítima, professores(as), na pior das hipóteses, fazem toda a diferença nas dinâmicas que estruturam a sociedade. Quem os(as) desrespeita e oprime, violenta a vida e não avalia como importantes o cuidado e as ações para se construir um mundo diferente, onde haja alternativas de (co)form(ação) polifônico-intercríticas destinadas à felicidade coletiva e à harmonia plena.
PROFESSOR OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.