Paulo Freire vive: podemos acreditar na educação

Depois que li Pedagogia da autonomia e Pedagogia da indignação, passei a observar o quanto de Freire ainda precisamos (re)ler e decifrar para que possamos, ao menos, nos aproximar de uma educação como prática da liberdade e, a fortiori, de superação das mazelas impostas pelo status quo.
Osvaldo Júnior na Bienal do Livro em 2022, São Paulo. Foto: Arquivo pessoal

Amar e mudar as coisas me interessa mais.

Antônio Carlos Belchior

 

Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir.

Rubem Azevedo Alves

 

O mineiro de Boa Esperança, autor de Ostra feliz não faz pérola, considerou, em maio de 1985, uma afronta ter que redigir um parecer para admissão de Paulo Reglus Neves Freire na Faculdade de Educação da Unicamp. Preferiu inverter os polos e enfatizou que “a questão não é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado”, dada, já naquela época, a magnitude e abrangência de sua escrita teórica, a qual vem sendo atacada de forma vazia e descabida.

No ano passado, recordo-me que recebi alguns insultos ao escrever o texto “Cambridge saúda Paulo Freire”, quando houve a inserção de uma estátua do Patrono da Educação brasileira em uma das universidades mais respeitadas do mundo. Alguns conhecidos passaram a me encaminhar mensagens, indagando-me sobre como uma pessoa inteligente podia defender o responsável pelo malogro que assola o campo educacional. Optei, não sei se ao certo, pelo silêncio; afinal, não é uma boa tarefa tentar conversar com um fascista, se é que isso é possível.

Depois que li Pedagogia da autonomia e Pedagogia da indignação, passei a observar o quanto de Freire ainda precisamos (re)ler e decifrar para que possamos, ao menos, nos aproximar de uma educação como prática da liberdade e, a fortiori, de superação das mazelas impostas pelo status quo.

Após o centenário de nascimento do educador, comecei a reler grande parte de sua obra, urdida em diversos espaços e tempos, haja vista o fato de ter sido perseguido pela Ditadura Militar, acusado de subversão à ordem. É triste ver a propagação de muitas de suas frases de forma isolada e proferidas fora de contexto, uma vez que esse processo pode gerar equívocos hermenêuticos, como acontece, por exemplo, com as categorias filosóficas da “boniteza” e da “esperança”. Fazer recortes e lançá-los nas redes sociais, onde há primazia do pensamento vazio, instantâneo e mal elaborado, pode até contribuir para alimentar o ódio que se tem a um educador cuja vida e trajetória profissional esteve sempre ligada à educação como prática de resistência ao fatalismo neoliberal.

Osvaldo Júnior no Instituto Paulo Freire, em SP. Foto: Arquivo pessoal

Paulo amava a vida, as gentes e os bichos. “Amar e mudar as coisas” lhe interessavam mais. Uso um verso de Belchior, mas aproveito para fazer um rápido adendo, sinalizando que, no bojo de sua epistemologia, talvez o verbete transformação caiba melhor, porquanto envolve o engajamento dos seres em busca de uma outra realidade. Seu delírio era “a experiência com coisas reais, um preto, um pobre, um estudante […], os humilhados do parque com os seus jornais”.

Em 2022, aproveitando um intervalo da Bienal Internacional do Livro, tive a oportunidade de conhecer o Instituto Paulo Freire, em São Paulo. Lá, pude entrar em contato com seu acervo antes e depois do exílio, além de conhecer obras e tirar algumas dúvidas com Ângela Antunes, uma das pesquisadoras que vêm contribuindo na divulgação do pensamento freiriano.

Tal como muitas existentes em nossa sociedade, mormente depois do avanço de forças e ideologias neoconservadoras e obscurantistas, é totalmente vazia a crítica direcionada ao fato de que Paulo Freire contribuiu para que a educação, no Brasil estivesse do jeito que está. Quem se dá ao trabalho, porque toda aventura intelectual demanda labor, de (re)ler e (re)interpretar a proposta freiriana, perceberá que as escolas brasileiras teriam outros contextos e estariam em um patamar diferente se agíssemos dentro da lógica de uma Pedagogia do oprimido e de uma Pedagogia da Esperança.

A cada leitura de suas obras, existe um chamado ao posicionamento ético-político. Em uma sociedade (in)tensamente desigual e marcada por clivagens de diversos matizes, é preciso se posicionar, manifestando nossa decisão a favor ou contra o “atual estado das coisas”. Talvez por isso, eu e várias outras pessoas insistamos tanto no poder de uma sala de aula, lócus onde se gestam e tecem experiências concretas de futuro pautadas em uma outra lógica, a da ética do humano, na qual exista espaço para as dúvidas, reflexões, divergências respeitosas e a outredade, uma categoria subçunsora disponível em seus livros.

A detração que envolve o nome de Paulo Freire, uma vez que seus pseudocríticos, certamente, não leram suas obras, pois têm medo delas ou do que elas podem produzir, falam demais porque não possuem nada de significativo a expressar. Lançam, portanto, nonsenses eivados de mistificação ideológica.

Com todo esse delírio coletivo que envolve e afeta o Brasil; talvez, o mundo em si, é necessário lançar questionamentos sobre o alcance das ideias de Paulo Freire, um pernambucano estudado mundialmente e com o qual aprendemos que “ensinar exige, dentre tantas outras questões, saber escutar” e ter “disponibilidade para o diálogo”. Se existisse apenas Pedagogia da autonomia, nosso Patrono ainda iria continuar merecendo todo prestígio que conquistou, por se tratar de uma obra na qual aponta quefazeres fundamentais e facetas imanentes ao ato difícil e poético de educar.

“A cada leitura de suas obras, existe um chamado ao posicionamento ético-político”. Foto: Arquivo pessoal

Depois da experiência de (re)leitura de muitas de suas obras, confesso que não tenho mais paciência para apreciar livros daqueles(as) que se perderam no romantismo-piegas e, deliberadamente, passaram a desconsiderar as agruras do real e a politicidade, lacunas e ambivalências do ato de educar. Na contramão, Paulo Freire nos ensina a entretecer teoria e prática, co-construindo realidades polifônicas, intercríticas e inclusivas, muito distantes do pó e das cinzas, dos nós e das ruínas.

Por isso, quanto mais se apedreja e se busca queimar suas obras, elas de ampliam, uma vez que o gesto insano de tentar expurgá-las só revela que a hegemonia neoliberal não está preocupada com a vida, seu vicejar, suas manifestações e amplitudes. Embora o pão esteja caro e a liberdade pequena, como bem afirmou Ferreira Gullar, precisamos seguir. Nessa toada, os gestos de resistência necessitam se alimentar de esperança mobilizadora, com a qual se questiona a vida, mas nela se age em busca de um oásis, da valorização da alteridade e de lenitivos. Porque Paulo Freire vive, podemos acreditar na educação e em sua Pedagogia dos sonhos possíveis, sem os quais a existência mirra e definha. Isso porque ele não foi um “profeta do terror, do oba oba”; pelo contrário, viveu “cumprindo o seu duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida”.


OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.

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