Quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que todas as pessoas são felizes…
Renato Russo
Em diversas ocasiões, em obras literárias e textos esparsos, resolvi falar sobre um tema metafísico que, não raro, costuma gerar incômodos, divergências e poucas aceitações. São sempre múltiplos os olhares que se lançam para a tristeza como sentimento imanente à vida. Todavia, a partir dela passei também a discorrer sobre a angústia e sua versão ampliada: a depressão, um sofrimento psicofísico que assola grande parte da população mundial que vivencia situações contraditórias e cruéis, levando muita gente a pensar ser a vida algo banal e pouco simbólico, talvez um mero “objeto”, a ponto de ser destruída com um ato praticado por um ser humano contra ele mesmo. Confesso que, em muitos momentos, tive dificuldades no processo de elaboração deste texto e até pensei em desistir, ato que não costumo fazer, porque nunca aceito perder uma batalha contra meus próprios pensamentos, por não achar as palavras “certas” a fim de expressá-lo. É uma questão complexa de orgulho que precisa ser melhor elaborada.
Costumo dizer, em várias aulas e palestras, que o efeito aquarela responsável por pintar cada mês do ano com uma cor é o retrato cabal de uma sociedade doente, fechada em si com seus pesadelos, delírios (individuais e coletivos) e desilusões. O setembro foi metamorfoseado de amarelo em alusão às práticas que buscam, em seu bojo, sensibilizar pessoas para valorização da vida, combatendo, destarte, o suicídio, uma das maiores causas de mortes no mundo. É claro que muitas empresas se aproveitaram, aderindo à causa sócio-existencial de forma cínica e usando-a, sob a égide de uma pseudo-responsabilidade, como liame para vender seus produtos em um mundo no qual o capitalismo virou uma grande e destrutiva religião que ilude e, diga-se de passagem, deprime e mata.
O fato é que, em virtude da relevância do tema, precisamos voltar a discutir, (meta)criticamente sobre os (não) sentidos da existência humana em um universo no qual, consoante dados recentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada quarenta segundos, um indivíduo comete suicídio. Vivemos, portanto, um pesadelo onde uma quantidade expressiva de pessoas precisa de atenção e da ética do cuidado. Às vezes, tenho a péssima sensação de que, em meio às rotinas densas que nos sufocam e limitam, tudo isso pode piorar, por vivermos em um teatro de vampiros no qual “o demais nunca é o bastante”, conforme relato de Renato Russo. Nesse veio, é fácil perceber que a “vida anda louca e as pessoas andam tristes”, só para citar parte da letra de uma canção de Vander Lee.
É cediço que a depressão e outros transtornos mentais não tiveram sua gênese na contemporaneidade, mas vêm se acentuando, vertiginosamente, devido a uma miríade de fatores que englobam nuances múltiplas, históricas e (hiper)complexas. Nos contextos educacionais, por exemplo, ficou cada vez mais difícil ser professor(a) em uma época na qual os(as) interlocutores(as), sujeitos co-partícipes dos processos pedagógicos, apresentam crises de ansiedade, pânicos, síndrome de burnout, cansaços (in)tensos e o desejo de “chorar até cansar”. A dificuldade advém por estarmos lidando com questões cognitivas imbricadas às emoções, as quais, para serem vivenciadas da melhor maneira possível – se é que isso possa existir, precisam ser, com a devida cautela, refletidas, pensadas e problematizadas.
Estes dias, senti que uma turma para qual ministro aulas de Literatura e Redação estava demonstrando intenso cansaço, não uma fadiga típica de rotinas com as quais costumamos lidar, mas aparentemente atrelada à falta de sentido em relação ao que se fazia toda manhã. De forma proposital, resolvi vestir uma camisa amarela, em referência ao mês que estávamos, e aproveitei para falar sobre o quanto os livros podem ser legítimos companheiros de travessia e nos ajudar a sair de muitas ciladas, incluindo as existenciais. Era, naquele momento, o lenitivo que poderia emitir. Tenho cismas com cansaços “repentinos” e duradouros, pois cansar pode ser o resultado de algo cruel e doloroso, porém muitos indivíduos, na vida, se perdem e, no meio do caminho, não conseguem mais tirar as pedras e estabelecer contatos/nexos consigo mesmo e, por vezes, com os outros.
Mais do que saber que grande parte do mundo está distante da felicidade (se é que é possível dela se aproximar), comportando-se de forma depressiva, desatenta, com dificuldades de concentração, hiperagitada e nervosa, dados benéficos aos mercados farmacêuticos que lucram com toda essa gama de doenças, é preciso debater essas facetas à luz de diversos determinantes sociais, econômicos, familiares e ideológicos que estão a elas atreladas e entrelaçadas. Embora se fale muito sobre doenças mentais, por outro lado ainda há um pântano desinformacional, pouca compreensão e muito estigma, tudo isso ratificado e patrocinado, por vezes, dentro de uma indústria cultural que se alimenta do limitado e perigoso senso comum.
Sou fruto das muitas cenas nas quais a tristeza, em suas versões ampliadas e patológicas, tomou conta de mim. Já fui, inclusive, afastado de minhas atividades laborativas e tive, em virtude da letargia, que dar um tempo por não conseguir lidar com os (não) sentidos da vida que surgiram atrelados a questões pessoais, algumas coletivas, todas mal elaboradas. Afastar-me dos livros, da leitura e da escrita era um martírio difícil de ser suportado e que só fazia ampliar o vácuo existencial. Fui retornando à “normalidade” graças ao auxílio médico cauteloso. É salutar perceber a ciência legitimando e corroborando a vida. Ao retomar o ânimo, lembro-me que buscava informações como um consolo, pois elas me levavam a caminhos analíticos de compreensão. Nunca visualizei a depressão como fruto de vontade pessoal ou abandono divino, mas sempre duvidei dos pensamentos e convites internos e externos a nós que nos conduzem a ela por não termos maturidade ou capacidade filosófica de reagir crítica e negativamente. Embora a vida tenha sempre razão, como nos ensinou Chico Buarque, ela tem suas ciladas e abismos. É, de fato, uma grande ilusão sobre a qual fazemos uma travessia: às vezes longa; em outros casos, breve.
Enquanto escrevi este texto, notei, taciturnamente, que várias pessoas jamais poderão lê-lo porque não suportaram o peso da vida e cometeram suicídio. Se fôssemos mesmo fraternais, estaríamos, no mínimo, em uma espécie de crise existencial reflexiva, a discutir ou tentar, ao menos, entender, por que esses indivíduos buscaram um fim antes do fim, antecipando um caminho em busca da interrupção do sofrimento.
Em um mundo em que, nas redes sociais, figuram milhares de sorrisos e mundos falsos a envolver uma erupção de felicidade instantânea, vazia e hipócrita, precisamos seguir os conselhos de Renato Russo: contemplar elementos da natureza. Toda vez que vou à praia, lembro-me da música “Vento no litoral” e do quanto essa canção me fez mudar muitos destinos. No momento em que o poeta também mirou o mar, percebeu que se entregar à depressão era um ato equivocado. Melhor seria descansar, deixando o vento levar tudo em boa hora em meio à linha do horizonte.
Talvez muita gente esteja ficando doida com uma vida doída que leva diariamente. Talvez uma grande parte dessa gente nem precise de fármacos ou da elevada dose que usa. Talvez outras estratégias de cura fossem menos destrutivas do que a própria doença em si. Estar depressivo, ansioso ou possuir algum transtorno mental é um fardo em uma sociedade doente e cansada que tem medo de se olhar no espelho. É como se essas condições não fossem suportáveis ou devessem ser eliminadas o quanto antes.
É comum, quando chega o famoso “setembro amarelo”, muita gente se perguntar sobre o que fazer. Qual a “solução” para tudo isso? Será que ainda podemos erguer um mundo que seja mais habitável e menos doloroso? “Será só imaginação, será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Para estas perguntas, volto a usar a retórica do “talvez”. Lanço sempre a dúvida em um cenário repleto de incertezas e emoções pulverizadas/caleidoscópicas.
Talvez, se praticássemos mais o gesto da escuta, do acolhimento sadio, se saíssemos do lugar de juiz-algoz para o de parceiro-conciliador, se aderíssemos menos aos anseios do capital, se nos preocupássemos menos com situações desnecessárias e que, caso nem pensássemos nelas, não fariam a menor importância, se cuidássemos mais de nossos mundos interiores, abandonássemos o egoísmo e os vícios que nos corrompem, se olhássemos mais para o dinheiro como um instrumento e não uma meta persecutória, estaríamos diante de um bom começo e fora de um terreno movediço, pois receitas, no campo da emoção, são sempre frágeis e melindrosas. Reconheço que “tudo” isso pode, inclusive, não dar certo. Mas, mesmo assim, precisamos pensar em como extirpar patologias que minam nossa vontade natural de viver. Nesse caso, uma vereda possível é a contemplação do horizonte utópico onde mesmo com o(s) sentido(s) disperso(s), trilha-se em busca da mágica presença das estrelas que iluminam nossos caminhos, independentemente de nossas interioridades e situações emocionais.
OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.