Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo.
Ludwig Wittgenstein
Na última terça-feira, cheguei à escola na qual trabalho e fui tomado, rapidamente, por uma espécie de estranhamento filosófico. A expressão “bora, Bill” apareceu na primeira voz oriunda de um aluno e ecoava por todo recinto, fazendo-me procurar a sua gênese e desdobramentos. Por si só, tais palavras não dizem muito. Como, via televisão, apenas assisto a jornais de forma esporádica e alguns capítulos de novelas, pensei que fosse alguma cena de um programa de ampla audiência que se passa nos dias melancólicos de domingo.
Resolvi deixar a questão de lado. Podia ser também um meme oriundo da internet e, tal como seu célere surgimento, estaria com os dias contados, o que é comum no universo midiático. Todavia, ao entrar na sala, notei, novamente, que a expressão tomava conta dos corredores. Alunos (as) chegavam e pareciam se “cumprimentar” com o “bora, Bill”. Como de costume, solicitei que algum estudante da turma onde estava me explicasse o significado daquelas palavras, uma vez que todo ato comunicativo envolve poder, maniqueísmo com o qual se edifica o bem ou se banaliza o mal.
Quando descobri que se tratava de uma frase proferida por alguém durante um jogo de futebol, fiquei a discutir o quanto questões vazias – ancoradas no direito de se aparecer – vêm ganhando proporções apoteóticas em cenários do espetáculo e, mais do que isso, a dimensão que tais expressões provocam, gerando uma espécie de histeria coletiva a demonstrar nossa fraqueza de imaginação e criticidade.
Sempre será necessária a presença do pensamento reflexivo a fim de que a sociedade e seus membros constituintes se deem conta do caráter articulatório, político e performativo da linguagem. O que se ganha ou se sente ao pronunciar para alguém, como forma de interpelação ou “saudação”, a expressão “bora, Bill”? Será que muitos (as) pensam ser um capital linguístico potente em um mundo onde há pouco diálogo, pouca reflexão e, por corolário, quase nada a se dizer?
Hannah Arendt estava certa ao postular que o vazio de pensamento gera, como consequência, pensamentos vazios. Talvez, essa expressão que vem sendo usada com fervor seja o retrato de uma sociedade que está se esfacelando, desconhecendo os limites que os atos de linguagem provocam em nós e nas relações sociais, afetivas e políticas que estabelecemos com o(s) outro(s).
“Bora, Bill” talvez também represente uma voz que, por estar aprisionada, desejando atenção dos holofotes, lança-se ao(s) outro(s) como um liame para aplacar dores de uma sociedade cansada e doente que tenta rir e chamar atenção, utilizando-se, para isso, de estratégias banais. Nesse sentido, erige-se uma norma regulatória e reducionista. Há quem use o “bora, Bill” e se locuplete simbolicamente com ele e quem desconheça ou evite seu uso. Dizer palavras ilógicas e sem conteúdo formal concreto ou bem formulado pode ser um caminho para aparecer no cenário teatral onde o riso genuíno de felicidade seja uma áspera ilusão. Como as redes sociais são, conforme Marcia Tiburi, um lugar onde todos têm vez, cria-se um processo de democratização da expressão em um mundo de imbecis.
O caráter de repetição da frase, em diversos contextos, incluídos os não escolares, revelam a necessidade de uma grande horda de pessoas em busca de uma tendência, com a qual se regozijam. Estar fora dos temas e lemas “do momento” não pega bem em um universo onde as redes sociais demarcam o pensamento e o comportamento alheios. Diga-me qual meme dominas e te direi quem é você no mundo virtual. Dizer que não sabe o que significa “bora, Bill” tem o peso de distanciamento de um grupo, de uma legião que busca visibilidade.
Poderíamos, não fosse o vazio e suas reverberações nos tentáculos da sociedade, emitir, para outras pessoas, frases que tivessem mais sentido com o cotidiano e uma conexão com o que vivemos e precisamos ouvir para fazer dos nossos dias (cada vez mais tristonhos e pesados) espaços de esperança e ventura. Não obstante, a geração memética tenta forçar o riso diante de cenas sem graça com as quais um elo de prazer é forçado e induzido à repetição.
Até as empresas, uma vez que a religião do capitalismo nunca deixa de fora essas questões e com elas alimenta suas engrenagens, aproveitaram-se para lançar seus produtos e serviços. Nesse veio, Bill seria o mero consumidor antenado com uma frase que viralizou pela internet. Como o verbete “bora” é um registro informal de um contive para ação, uma travessia, usar “bora, Bill” foi mais uma estratégia de marketing para retirar produtos das prateleiras ou vender serviços que os(as) consumidores(as) não precisam para viver. No mundo dos negócios, pouca importa quem é Bill, pouco ou em nada interessa perguntar os motivos pelos quais a expressão se multiplica e ganha efervescência. Vale é ganhar. A lógica proeminente é a do lucro acima de tudo e de todos, mesmo sem saber o real significado, a origem e dos desdobramentos do meme.
Fiquei, na condição reflexiva de professor de Língua Portuguesa, a me perguntar se, com o uso do “bora, Bill” seria mais fácil conquistar alunos (as) para uma imersão no vasto espaço pedagógico de duas aulas, nas quais a dispersão e o desinteresse ganham primazia. Será que o verbo e o vocativo mudariam a situação? Será que o uso da expressão geraria entrosamento e conexão? Como já sei dos resultados e do vazio que envolve palavras repetidas amiúde, disse aos estudantes que estavam comigo na sala o quanto o mundo urdido das redes sociais brinca com questões irrelevantes, empobrecidas e mesquinhas, esquecendo-se ou secundarizando que, no plano real, há uma urgente necessidade de interpelar o(s) outro(s) e convocá-lo(s) ao pensamento (meta)crítico, com o qual se mobiliza ideias em torno do que estamos fazendo no cotidiano uns com os outros e quais dispositivos de linguagem usamos.
OSVALDO ALVES DE JESUS JÚNIOR é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional, e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. Em 2021, publicou BNCC: que axé ela tem?, e em 2022 Eu não posso ler seu livro. Participa, constantemente, de antologias literárias.