Osvaldo Júnior: Esse tal dono da lancha…

Não é paranoia ou mistificação. A música “Cabeça branca” é um arroto machista, um dispositivo assaz perigoso e, tal como alguns vídeos do atual presidente do Brasil, deveria sair do ar.
"É de se indignar que a situação relatada pelo cantor exista no tecido social, onde mulheres são objetificadas a cumprir desejos dos homens".

Geralmente, não costumo escutar notícias e propagandas do rádio. Também não vejo nada de démodé nisso. Faço apenas quando vou à casa de meus familiares, mimetizando um hábito antigo de minha mãe, que deixa o aparelho ligado enquanto realiza as atividades rotineiras da casa. Talvez ela veja o dispositivo sonoro como uma “presença” cujas ondas são capazes de espantar sua solidão em meio a ações triviais.

Esses dias, talvez não por acaso, pluguei meus ouvidos nas narrativas do pequeno rádio marrom de minha mãe, a fim de fugir de uma atividade densa na qual estava mergulhado. Comecei a rir com propagandas, com as falas dos locutores e, de repente, a ficar preocupado ao ouvir a letra da música “Cabeça branca”, cujos fragmentos já tinha visto outras pessoas cantarem, mas nunca os observei na íntegra e com viés crítico.

Ao que consta, a letra da música pertence a Tierry Costa, um homem, o mesmo da bem tocada “Hackearam-me”. O compositor, em sua dizibilidade, reflete a dominação masculina de um “cabeça branca”, um “cidadão de bem”, um empresário rico que precisa “relaxar” em alto-mar, sendo que, para isso, “patrocina” um churrascão onde as novinhas da zona podem, em uma lancha, pousar de “patroas” nas redes sociais, tomando champanhe. É visível que as categorias “gênero” e “classe” figuram como marcadores de opressão, até porque o refrão repete, com ênfase, que “o dono da lancha é o cabeça branca / a champanhe quem banca é o cabeça branca / por que novinha, na hora da selfie / junto com as amigas, o coroa nunca aparece”.

“A música “Cabeça branca” deveria sair do ar. Se isso não acontecer, precisa ser “bloqueada” após um exercício crítico de pensamento”.

Marcia Tiburi, em Feminismo em comum, assevera que o “homem branco” é, ao mesmo tempo, uma figura e uma lógica, sendo que o espaço da voz é atribuído a ele, que está situado no topo social dos privilégios e representa o capital sexual, financeiro, social e intelectual.

É de se indignar que a situação relatada pelo cantor exista no tecido social, onde mulheres são objetificadas a cumprir desejos dos homens, os quais são colocados como seres do “bem” e integrantes de uma ala “respeitável” da sociedade. Simone de Beauvoir afirmou que não há crime maior do que retirar um ser humano de sua própria humanidade, reduzindo-o à condição de objeto.

Na letra, a adjetivação positiva é atribuída ao barão-protagonista, simulacro do patriarcado, representante de uma classe social que se acha no direito de narrar uma aventura, seu “happy hour” por ter sido o financiador dela, devendo as mulheres terem gratidão, uma vez que curtir em uma lancha torna-se, na sociedade do consumo, um distintivo/privilégio de classe.

O exemplo em análise é uma prova de que a indústria fonográfica brasileira precisa se reinventar de forma urgente. É lamentável que letras como essas consigam figurar nas mais tocadas dos rádios, levem seus autores a ficarem ricos ou angariarem amplo reconhecimento público. Teríamos uma miríade de outros exemplos similares. Isso significa que é necessário, mais do que nunca, “devolver” a inteligência das pessoas a elas mesmas. O vazio de pensamento é perverso. A burrice enquanto categoria moral/social vem crescendo vertiginosamente, destruindo a vida e deixando muita gente cega para os horrores do dia a dia, principalmente os cometidos pelos machos-alfa de “bem”. É recomendável continuar rezando o mantra de Chico César, pedindo a Deus que sempre “nos proteja da maldade de gente boa”.

“Infelizmente, Thierry faz um desserviço ao mundo com sua expressão musical”.

“Diz-me o que escuta e dir-te-ei quem és” é uma máxima que pode ser utilizada em nossos contextos diários. A linguagem e seus dispositivos deveriam estar a serviço da alteridade, do amor, do humanismo, da diversidade. Talvez essa situação nos mostre que o patriarcado, como sempre, vem nos impedindo de praticar uma filosofia da alteridade, na qual poderíamos repensar toda misoginia e subalternização das mulheres que vêm sendo feita por diversos cantores, entre os quais se insere o já mencionado. O acesso a músicas tal como a de Thierry também revela que estamos diante do consumismo de linguagem, o qual, consoante Marcia Tiburi, produz muito lixo que altera profundamente nossas vidas mental e física, ou seja, “o que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência”.

Não é paranoia ou mistificação. A música “Cabeça branca” é um arroto machista, um dispositivo assaz perigoso e, tal como alguns vídeos do atual presidente do Brasil, deveria sair do ar. Se isso não acontecer, precisa ser “bloqueada” após um exercício crítico de pensamento. Antes que alguns sigam na defensiva, afirmo que isso não é uma questão da “esquerda”. Quer queiramos ou não, quer pensemos ou não nisso, as falas de Thierry são territórios de poder, poder linguístico que afeta subjetividades e cujos desdobramentos práticos dele emana. Sua dizibilidade nos leva a perceber a assimetria existente entre homens e mulheres na sociedade. Precisamos, portanto, de mais Feminismos e pensar na famosa indicação filosófica de Marcia Tiburi, o que estamos fazendo uns com os outros, seja por meio da música, da literatura, do teatro ou da dança. Enfim, é preciso avaliar o caráter performativo do que dizemos e ouvimos, instaurando uma ético-política. Infelizmente, Thierry faz um desserviço ao mundo com sua expressão musical, esquecendo que sua letra alimenta a cultura da dominação patriarcal que muitos, inclusive, pensam não existir.

Osvaldo Júnior é colunista assíduo de Retratos e Fatos.

Osvaldo Alves de Jesus Júnior é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. No final de 2021, publicará BNCC: que axé ela tem? Participa, constantemente, de antologias literárias.

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O conteúdo veiculado na sessão Maria Bonita – Espaço Colaborativo é de inteira responsabilidade de seu autor, não representando, necessariamente, o ponto de vista de Retratos e Fatos.

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