Osvaldo Júnior: Neva no sertão: é capitalismo ou renovação?

Enquanto neva no sertão, penso no espírito decorativo e nas dores urbanas escamoteadas em 25 de dezembro, em um Papai Noel de plástico fabricado na China que lança seu “ho ho ho” para possíveis consumidores, em máquinas de vendas que se aquecem para receber cartões que anunciam compras aprovadas, em selfies que ostentam risos no Instagram, sendo que muitos vizinhos, sem ter o que comer, viajam nas ondas das propagandas da Sadia, Perdigão e Seara.
"Nunca me disseram por que ele usava uma roupa com tantos detalhes, o que, para nossa região, demostrava ser uma vestimenta muito quente".

Nunca gostei do clima do Natal e talvez seja esta a primeira vez que expresso meu sentimento diante de uma festa que mobiliza a atenção, emoções e recursos financeiros de muita gente por este mundo afora. Há quem pense que sou mal-humorado, em virtude do meu posicionamento frente ao convite à alegria que o momento provoca.

Trata-se de uma data que poderia apresentar significados mais genuínos se não recebesse tanta plasticidade, se sua real simbologia fosse partilhada em todos os dias do ano para que, neste rito de passagem, pudéssemos reunir familiares e amigos (estes cada vez mais raros), a fim de potencializar o amor, a esperança, a paz e outros mandamentos divinos.

Por não entrar na vibe associada ao mês de dezembro, no famoso “espírito natalino”, resolvo sempre ficar no meu cantinho, com a minha “chatice contumaz”. Por isso, costumo selecionar um bom livro para comigo atravessar o emblemático 25 de dezembro, a fim de não ser considerado “desmancha-prazeres” ou um ser do “contra”.

“Lembrar dos amigos que tenho me satisfaz mais do que entrar no jogo e na liturgia do consumismo hipócrita”.

Hoje, muitas cidades resolveram decorar ambientes avaliados como “cartões-postais”, inserindo elementos da cultura capitalista que abraçou a ideia do Natal para vender mais e espalhar a religião do “lucro acima de tudo”. No sertão nordestino, castigado por fortes e intensas secas, é possível até encontrar neve artificial, trenó e todo um conjunto de arquétipos associados ao nascimento do menino Jesus. Para alguns, isso representa um Natal disruptivo após o novo coronavírus ter sacudido o mundo. Para outros, a mera plasticidade de produtos chineses que não ficam longe de nosso cotidiano. Papai Noel gigante e bem colorido atrai a visão das crianças, cujas cores avivam a imaginação e, não nos enganemos, convidam para a compra, para aquisições materiais.

O jogo de luzes, pisca-piscas, guirlandas e quejandos é um convite para retirar das prateleiras o que muitos comerciantes não querem ver mais ali. É preciso vender, nem que para isso seja necessário utilizar o cinismo ou o nome de Deus em vão.

Fico pensando no que as crianças e seus familiares conversam no momento do Natal. Não sei se antes da data escrevem cartas juntos ou se dialogam sobre os sentidos do amor e da renovação em meio a um mundo-redemoinho caótico e cada vez mais turbulento. Talvez escrevam solicitando um iPhone 13s Pro Max ou pedindo que Papai Noel melhore de seu cansaço, tal como acontece na história Te amo, Papai Noel, de Léa Costa Santana Dias.

Em tempos nos quais as mudanças climáticas castigam o mundo, provocadas pela ação antrópica em busca de capital, não sei como infantes percebem o fato de verem a neve cair de forma tão simples, em um processo de apropriação cultural cujo debate também está escasso em muitos locais, inclusive nas escolas.

Também não participo mais de amigos-secretos ou ocultos, outra estratégia criada para aquecer as turbinas dos aviões que trazem produtos chineses para perto de nós. Penso que lídimos abraços sejam mais significativos, e lembrar dos amigos que tenho me satisfaz mais do que entrar no jogo e na liturgia do consumismo hipócrita.

“Recordo-me que nunca recebi, durante a infância, presentes de um Papai Noel”.

Recordo-me que nunca recebi, durante a infância, presentes de um Papai Noel. Apenas ficava encantado com as luzes bruxuleantes que encontrava nas avenidas após o pôr do sol. Nas escolas em que frequentei, nunca me disseram por que Papai Noel entregava presentes, sendo que os meus, quando chegavam, eram frutos do trabalho árduo de minha mãe. Nunca me disseram por que ele usava uma roupa com tantos detalhes, o que, para nossa região, demostrava ser uma vestimenta muito quente. Já na condição de professor, recordo-me que um aluno me perguntou por que Papai Noel não era azul ou lilás, indagação para a qual toda turma ficou inquieta.

Quando neva no sertão, algo estranho está acontecendo. A paisagem urbana foi alterada propositalmente. Do calor tropical, emerge isopor ou algodão a imitar espaços geográficos do Norte. Espero que alguém, ao menos, tenha notado isso. Ainda não houve um cataclisma que fizesse nevar em ambientes áridos sem a necessidade de aparelhos para impulsionar a precipitação de cristais de gelo.

Natal é tempo de movimentação neuronal em busca de reflexão. Talvez esta informação seja até “óbvia”, mas precisa ser reiterada em tempos nos quais o ódio e tantos outros afetos negativos dominam os cenários cotidianos. É preciso pensar a condição humana, principalmente após a experiência de uma pandemia que nos ensinou serem o acúmulo irreflexivo de coisas e a busca desenfreada por bens materiais totalmente desnecessários, além de destruírem a nossa mãe-natureza.

“Quando neva no sertão, algo estranho está acontecendo. A paisagem urbana foi alterada propositalmente. Do calor tropical, emerge isopor ou algodão a imitar espaços geográficos do Norte”.

Se nos preocupássemos mais com o essencial, talvez os dias posteriores ao Natal fossem tão potentes quanto o dia 25 ou sua véspera, nos quais as redes sociais transbordam de felicidade, como se já estivéssemos em uma verdadeira simbiose humana, mas tudo não passa de mera histeria comemorativa.

Enquanto neva no sertão, penso no espírito decorativo e nas dores urbanas escamoteadas em 25 de dezembro, em um Papai Noel de plástico fabricado na China que lança seu “ho ho ho” para possíveis consumidores, em máquinas de vendas que se aquecem para receber cartões que anunciam compras aprovadas, em selfies que ostentam risos no Instagram, sendo que muitos vizinhos, sem ter o que comer, viajam nas ondas das propagandas da Sadia, Perdigão e Seara. Como não podem comprar, talvez coloquem o sapatinho na varanda e pensem que o “velhinho que não se esquece de ninguém” trará a comida que a indústria agro assevera ser necessária em momentos de confraternização coletiva.

Enquanto os presentes não chegam, muitos optam por olhar a neve sertaneja, talvez na busca de uma renovação, sem saber que o vivo e selvagem capitalismo nos abocanha sem perdão. O que deveria vir baseado no religare a Deus, emana de outra religião…

Osvaldo Alves de Jesus Júnior é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. No final de 2021, publicará BNCC: que axé ela tem? Participa, constantemente, de antologias literárias.

_____

O conteúdo veiculado na sessão Maria Bonita – Espaço Colaborativo é de inteira responsabilidade de seu autor, não representando, necessariamente, o ponto de vista de Retratos e Fatos.

 

Compartilhe