As aulas presenciais estão de volta: reflexões sobre desafios educacionais no “pós-pandemia”

Foi um caos elevado a enésima potência ter que se reinventar de repente para continuar zelando pelo direito público subjetivo que os estudantes têm de aprender. Tudo isso, obviamente, diante das mais diversas configurações que afetam a vida dos alunos e de seus arranjos familiares.
O ensino remoto foi uma alternativa em meio ao aparente “beco sem saída” que se estabeleceu dentro do que se convencionou chamar “novo normal”. Osvaldo Júnior.

Quem lida com o exercício potente e árduo da docência, independente do tempo que tenha na área, jamais esperaria que, de forma abrupta, fôssemos obrigados a vivenciar o que o filósofo Pedro Duarte denominou, em uma de suas obras, de “exílio do mundo”. Foi um caos elevado a enésima potência ter que se reinventar de repente para continuar zelando pelo direito público subjetivo que os estudantes têm de aprender. Tudo isso, obviamente, diante das mais diversas configurações que afetam a vida dos alunos e de seus arranjos familiares. Se a rede privada, dotada de mais recursos e suporte tecnológico apresentou dificuldades, o que dizer da rede pública? Ambas vivenciarão as sequelas da pandemia durante um determinado período, porque não dá para prever a duração dos efeitos indesejados. Nesse ínterim, é imperativo pensar nos problemas do campo educacional, os quais já eram gigantes sem pandemia. Assim, que narrativas sairão depois dos efeitos do furacão provocado por ela?

Voltei de um congresso em Fortaleza há pouco tempo e fiquei bastante preocupado com o que lá ouvi: relatos sobre crianças com dificuldades para recortar simples papéis, com problemas de coordenação motora e, pasmem, que passaram a colocar as mãos nas torneiras dos bebedouros como se de lá fosse sair álcool em gel. Parece “história para boi dormir”, mas faço alusão a algumas facetas do mundo educacional “pós-pandemia”. Resolvo aspear o último termo em virtude da ausência de um fim do fenômeno, embora reconheça que o avanço da política de vacinação seja uma oportunidade mais segura de convívio social com menos regras rígidas.

“Voltei de um congresso em Fortaleza há pouco tempo e fiquei bastante preocupado com o que lá ouvi: relatos sobre crianças com dificuldades para recortar simples papéis, com problemas de coordenação motora e, pasmem, que passaram a colocar as mãos nas torneiras dos bebedouros como se de lá fosse sair álcool em gel”.

O Brasil é um país multiverso e de dimensão continental. São mais de 5500 municípios, sendo a quantidade de escolas muito grande. Certamente, cada uma vivenciou o contexto pandêmico de uma maneira peculiar e tem suas múltiplas vivências para expor em meio a realidades históricas marcadas sempre pela contradição. Eu, na condição de professor de Língua Portuguesa, jamais poderia/conseguiria falar de todas. Emito, pois, considerações sobre a minha realidade, na Bahia, que foi assaz preocupante. Primeiro, por não termos a validação de atividades remotas no ano de 2020. Na sequência, no “estouro da boiada”, recebemos a informação de que deveríamos, a todo custo, começar o ano letivo “dois em um”, adotando a ideia de “continuum curricular”, expressão latina cujos desdobramentos práticos na vida dos estudantes serão amplamente destrutivos. Talvez os discentes até demorem a perceber. Não bastasse isso, tivemos que adotar seis unidades letivas em um curto intervalo temporal, na tentativa de recuperar o que foi perdido, desconsiderando a existência de condições atípicas de uma catástrofe que levou ao cancelamento das aulas presenciais.

Educação é e sempre será assunto muito sério, embora não seja levado em consideração pela maior parte das autoridades ditas “competentes”. Fico pensando no que os adolescentes e as crianças fizeram nesses tempos de confinamento dentro de suas próprias casas. Também reflito se é possível, de fato, falar em educação remota de “qualidade”, com implicações pedagógicas emancipatórias efetivas, tendo em vista a exclusão tecnológica (não acesso a aparelhos e ao famoso 4G) e a ausência de, dentre outras questões, acompanhamento familiar adequado aos processos de aprendizagem. Fico sempre pensando em muitos aspectos cruciais que foram vilipendiados.

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Os embaraços e as celeumas foram tantos que, por vezes, a percepção crítica sobre o que fazemos – com a nossa profissão ou com os alunos – ficou secundarizada. O ensino remoto foi uma alternativa em meio ao aparente “beco sem saída” que se estabeleceu dentro do que se convencionou chamar “novo normal”. Quando passei, por exemplo, a exercer a função de coordenador pedagógico dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental de uma escola particular, perguntei-me se essa via de ensino/aprendizagem, de fato, funcionava. Na dúvida, recorri à leitura de um artigo de Dermeval Saviani e Ana Carolina Galvão, teóricos que analisaram essa conjuntura e também se perguntaram: “pode o “ensino” remoto garantir “[…] uma totalidade de manifestação humana de vida” (MARX, 2010, p. 112) que colabore com a emancipação dos indivíduos, tendo em vista o distanciamento entre professores e estudantes?”. Eles mesmos consideram tal opção como “vazia e embobrecida”, porquanto “se expressa na impossibilidade de se realizar um trabalho pedagógico sério com o aprofundamento dos conteúdos de ensino, uma vez que essa modalidade não comporta aulas que se valham de diferentes formas de abordagem e que tenham professores e alunos com os mesmos espaços, tempos e compartilhamentos da educação presencial”. Tal pensamento contém, em seu bojo, muito do que vivenciamos, embora isso não signifique discordar ou negar vários trabalhos expressivos que foram entretecidos nos momentos de aulas síncronas com vários estudantes por este país afora.

A precariedade das condições objetivas e subjetivas do trabalho docente foi, sobremaneira, ampliada nos anos de pandemia. Além disso, ficou tudo mais oneroso. Tivemos que comprar computadores, tablets, celulares e dispositivos complementares, aumentar a velocidade da internet e, dentre outros detalhes, pagar a conta de luz que ficou mais cara, bem como as despesas com a coluna que passou a doer em virtude de tantas horas sentadas em frente a uma máquina. Não bastasse isso, também foi necessário arcar com os custos relacionados ao intenso estresse e desgaste mental, cujos efeitos não costumam cessar rapidamente.

“A escola ‘pós-pandemia’ será obrigada a continuar se modificando, a sair dos apuros maximizados por uma crise sanitária global”. Foto: Pixabay/Alexandra Koch

E quanto aos estudantes, sua saúde mental, suas aprendizagens, seus processos de subjetivação? Como é função do ato educativo “cuidar do pleno desenvolvimento do indivíduo”, os professores terão imensas tarefas complementares. Para isso, precisarão estar bem e em contextos favoráveis, a fim de auxiliar os alunos a espantarem medos, ansiedades, a refletirem sobre o mundo e suas modificações e, mais do que isso, convidá-los, novamente, a vivenciarem, de forma genuína e fecunda, a experiência aula, um procedimento filosófico cujo tempo-espaço auxilia docentes e discentes a, de forma cooperativa, se reinventarem. Aprender no “pós-pandemia” será um verbo que exigirá percepção do real, eivado de contradições histórias. Demandará estar aberto ao novo, à contemplação e articulação de saberes canônicos da tradição essenciais no processo de desmascaramento do que nos foi, inclusive, ocultado.

A escola “pós-pandemia” será obrigada a continuar se modificando, a sair dos apuros maximizados por uma crise sanitária global. Certas redes e paredes já não fazem mais sentido. As pendências afetivas e cognitivas, certamente, aumentaram, o que exige um trabalho pedagógico mais articulado e consistente para dar conta do que na instituição escolar se projeta e se apresenta. Mais do que isso, é preciso superar a situação descrita por Dermeval Saviani e Ana Carolina Galvão de que, no ensino remoto, “ficamos com pouco ensino, pouca aprendizagem, pouco conteúdo, pouca carga horária, pouco diálogo”. O impacto desse conjunto de “poucos” na subjetividade e no desenvolvimento precisa levar toda comunidade educativa a repensar seus quefazeres, visando ao alcance dos objetivos da educação emancipadora nos chãos da escola pública. Não podemos deixar de enfrentar a grave situação que temos pela frente. O desafio envolve, portanto, uma urgente ético-política. Olhe que talvez estejamos no começo, ainda catando os cacos. Enfim, a educação não suporta mais tanto retrocesso…

Osvaldo Alves de Jesus Júnior é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. No final de 2021, publicará BNCC: que axé ela tem? Participa, constantemente, de antologias literárias.

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