Osvaldo Júnior: Você tem um polvo bipolar?

São perigosos os reducionismos a que muitas empresas submetem os seus produtos com o intuito de comercializá-los a qualquer custo, sem se preocupar com as devidas consequências ou os alcances ideológicos nas subjetividades humanas.
"De que forma um “polvo bipolar” irá ajudar um filho a administrar raivas e emoções negativas?", questiona Osvaldo nesse texto de estreia no Espaço Colaborativo Maria Bonita.

Estou sempre alegre ou triste.
Caetano Veloso

Ao observar imagens do status do WhatsApp de uma empresária, notei a presença de polvos de pelúcia bem coloridos, com características típicas de objetos comerciais possivelmente destinados às crianças. Na descrição, o produto recebia o nome de “polvo bipolar”. Estranhei a expressão atribuída, mas, em virtude da pressa, não dei a devida atenção ao assunto naquele momento.

À noite, uma grande amiga me perguntou se eu conhecia os mais novos brinquedos-tendências do momento, apresentando-me o pop it fidget toys e o já visto “polvo bipolar”. Em seguida, comentou sobre os valores e as funções de cada objeto, criados com uma associação às questões emocionais cujo trabalho é, de fato, assaz necessário em tempos contemporâneos marcados por várias crises na psique.

Rapidamente, lembrei-me da “onda/sensação” do spinner, um brinquedo que apareceu nas mãos de muitas crianças, adolescentes e adultos, sendo considerado uma “febre”. Nas escolas, era raro um estudante não ter o objeto, o que fazia muitos se dispersarem em momentos de aulas, embora algumas pessoas asseverem ser ele utilizado em terapias envolvendo autistas e indivíduos com transtorno de déficit de atenção. Eram vários os modelos e tamanhos. Como houve uma “revolução”, rapidamente os produtores se dispuseram a criar uma enorme variação do produto, a fim de conquistar um farto público-alvo.

Fico pensando na cosmovisão que envolve a criação de um “polvo” cuja característica é, de forma prática e genérica, ser bipolar. Alguns chamam o objeto de “polvo do humor” ou “polvo reversível”, mas a atribuição de uma possível “bipolaridade” ao animal é perigosa e faz um desserviço em relação às informações adequadas que são transmitidas pelo ramo da Psiquiatria. Para isso, uma breve pesquisa mostrará que a bipolaridade não é uma simples mudança de humor fácil de ser convertida. Trata-se de um transtorno mental grave cujos desdobramentos ultrapassam uma mera vivência de alegrias e tristezas, vistas por um viés maniqueísta perverso. Reduzir o binômio alegria/tristeza a um objeto que mimetiza esses sentimentos é também algo a se pensar.

“Fico pensando na cosmovisão que envolve a criação de um “polvo” cuja característica é, de forma prática e genérica, ser bipolar”. Foto: Arquivo pessoal

São perigosos os reducionismos a que muitas empresas submetem os seus produtos com o intuito de comercializá-los a qualquer custo, sem se preocupar com as devidas consequências ou os alcances ideológicos nas subjetividades humanas. É muito mais significativo adotar outras estratégias para se conversar com crianças e adolescentes sobre as oscilações emocionais típicas de um período da existência humana e/ou aquelas consideradas/analisadas como patológicas.

Os sensoriais fidget toys estão sendo vendidos nas esquinas das lojas ou permanecem em promoção em vários sítios eletrônicos, a fim de ajudar muita gente a “combater” o estresse que assola grande parte da população mundial. Viver estressado é algo doloroso. Todavia, a lógica que existe é de que é necessário comprar um objeto e manuseá-lo para controlar emoções e obter um antídoto para um problema perverso. Por isso, muitas crianças já estão eufóricas pela aquisição ou tristes ao dizerem para um colega que não possuem o material colorido e atraente que, ao ser manuseado, ameniza/elimina o estresse. Se a solução para as irritações humanas for essa, podemos ficar tranquilos, pois estamos sãos e salvos. Mas e aqueles que não podem comprar o brinquedo?

Já não bastasse a indústria farmacológica e seus exageros, agora surgem novas tendências imbuídas de um propósito “positivo”, mas eivadas de desdobramentos que podem ser consideravelmente desastrosos.
Cada pessoa pode fazer uso de seus recursos financeiros a fim de comprar o que acha “viável” para seus filhos. Todavia, penso que uma reflexão (meta)crítica em torno dessas ações será mais relevante para a sociedade e o próprio desenvolvimento emocional que se deseja.

De que forma um “polvo bipolar” irá ajudar um filho a administrar raivas e emoções negativas? De que maneira um mero objeto o auxiliará a conviver com feixes de felicidade/tristeza que a vida proporciona a todo instante? O contato com a reflexão é, portanto, muito mais fecundo. As tendências fazem parte de um projeto econômico-ideológico que conspurca uma necessidade humana, qual seja, o trabalho com a viés afetivo, reduzindo-o a uma lógica do hiperconsumo cuja prática posterior é o mero descarte.

Um polvo bipolar não ajuda a entender/acolher um povo bipolar. Não podemos reduzir questões sérias e multirreferenciais que envolvem a patologia a uma mera aquisição de um produto mercadológico que, inclusive, pode ampliar ainda mais os estigmas associados às questões mentais, porquanto uma variação de humor típica do humano pode levar alguém a classificar o outro como “bipolar”.

Tive a oportunidade de conhecer, em uma das escolas nas quais trabalho, os dois objetos, hoje “sonhos de consumo” de muita gente. As crianças me apresentavam de forma deslumbrada e em uma alegria invejável. Na ocasião, fiquei atônito e não sabia se dava risada ou mantinha minha preocupação com a tática de capitalização que vê nas emoções humanas uma mera mercadoria potencialmente rentável.

Além da indústria fonográfica perversa, agora surgem mais brinquedos-tendências que, por meio de redes sociais como o tik tok, apenas ajudam a ofuscar nossa visão para o universo complexo das emoções humanas.
Como nos provoca Edgar Morin em um dos seus livros, “para onde vai o mundo”?

 

Osvaldo Alves de Jesus Júnior é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. No final de 2021, publicará BNCC: que axé ela tem? Participa, constantemente, de antologias literárias.

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O conteúdo veiculado na sessão Maria Bonita – Espaço Colaborativo é de inteira responsabilidade de seu autor, não representando, necessariamente, o ponto de vista de Retratos e Fatos.

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