Estou sempre alegre ou triste.
Caetano Veloso
Ao observar imagens do status do WhatsApp de uma empresária, notei a presença de polvos de pelúcia bem coloridos, com características típicas de objetos comerciais possivelmente destinados às crianças. Na descrição, o produto recebia o nome de “polvo bipolar”. Estranhei a expressão atribuída, mas, em virtude da pressa, não dei a devida atenção ao assunto naquele momento.
À noite, uma grande amiga me perguntou se eu conhecia os mais novos brinquedos-tendências do momento, apresentando-me o pop it fidget toys e o já visto “polvo bipolar”. Em seguida, comentou sobre os valores e as funções de cada objeto, criados com uma associação às questões emocionais cujo trabalho é, de fato, assaz necessário em tempos contemporâneos marcados por várias crises na psique.
Rapidamente, lembrei-me da “onda/sensação” do spinner, um brinquedo que apareceu nas mãos de muitas crianças, adolescentes e adultos, sendo considerado uma “febre”. Nas escolas, era raro um estudante não ter o objeto, o que fazia muitos se dispersarem em momentos de aulas, embora algumas pessoas asseverem ser ele utilizado em terapias envolvendo autistas e indivíduos com transtorno de déficit de atenção. Eram vários os modelos e tamanhos. Como houve uma “revolução”, rapidamente os produtores se dispuseram a criar uma enorme variação do produto, a fim de conquistar um farto público-alvo.
Fico pensando na cosmovisão que envolve a criação de um “polvo” cuja característica é, de forma prática e genérica, ser bipolar. Alguns chamam o objeto de “polvo do humor” ou “polvo reversível”, mas a atribuição de uma possível “bipolaridade” ao animal é perigosa e faz um desserviço em relação às informações adequadas que são transmitidas pelo ramo da Psiquiatria. Para isso, uma breve pesquisa mostrará que a bipolaridade não é uma simples mudança de humor fácil de ser convertida. Trata-se de um transtorno mental grave cujos desdobramentos ultrapassam uma mera vivência de alegrias e tristezas, vistas por um viés maniqueísta perverso. Reduzir o binômio alegria/tristeza a um objeto que mimetiza esses sentimentos é também algo a se pensar.
São perigosos os reducionismos a que muitas empresas submetem os seus produtos com o intuito de comercializá-los a qualquer custo, sem se preocupar com as devidas consequências ou os alcances ideológicos nas subjetividades humanas. É muito mais significativo adotar outras estratégias para se conversar com crianças e adolescentes sobre as oscilações emocionais típicas de um período da existência humana e/ou aquelas consideradas/analisadas como patológicas.
Os sensoriais fidget toys estão sendo vendidos nas esquinas das lojas ou permanecem em promoção em vários sítios eletrônicos, a fim de ajudar muita gente a “combater” o estresse que assola grande parte da população mundial. Viver estressado é algo doloroso. Todavia, a lógica que existe é de que é necessário comprar um objeto e manuseá-lo para controlar emoções e obter um antídoto para um problema perverso. Por isso, muitas crianças já estão eufóricas pela aquisição ou tristes ao dizerem para um colega que não possuem o material colorido e atraente que, ao ser manuseado, ameniza/elimina o estresse. Se a solução para as irritações humanas for essa, podemos ficar tranquilos, pois estamos sãos e salvos. Mas e aqueles que não podem comprar o brinquedo?
Já não bastasse a indústria farmacológica e seus exageros, agora surgem novas tendências imbuídas de um propósito “positivo”, mas eivadas de desdobramentos que podem ser consideravelmente desastrosos.
Cada pessoa pode fazer uso de seus recursos financeiros a fim de comprar o que acha “viável” para seus filhos. Todavia, penso que uma reflexão (meta)crítica em torno dessas ações será mais relevante para a sociedade e o próprio desenvolvimento emocional que se deseja.
De que forma um “polvo bipolar” irá ajudar um filho a administrar raivas e emoções negativas? De que maneira um mero objeto o auxiliará a conviver com feixes de felicidade/tristeza que a vida proporciona a todo instante? O contato com a reflexão é, portanto, muito mais fecundo. As tendências fazem parte de um projeto econômico-ideológico que conspurca uma necessidade humana, qual seja, o trabalho com a viés afetivo, reduzindo-o a uma lógica do hiperconsumo cuja prática posterior é o mero descarte.
Um polvo bipolar não ajuda a entender/acolher um povo bipolar. Não podemos reduzir questões sérias e multirreferenciais que envolvem a patologia a uma mera aquisição de um produto mercadológico que, inclusive, pode ampliar ainda mais os estigmas associados às questões mentais, porquanto uma variação de humor típica do humano pode levar alguém a classificar o outro como “bipolar”.
Tive a oportunidade de conhecer, em uma das escolas nas quais trabalho, os dois objetos, hoje “sonhos de consumo” de muita gente. As crianças me apresentavam de forma deslumbrada e em uma alegria invejável. Na ocasião, fiquei atônito e não sabia se dava risada ou mantinha minha preocupação com a tática de capitalização que vê nas emoções humanas uma mera mercadoria potencialmente rentável.
Além da indústria fonográfica perversa, agora surgem mais brinquedos-tendências que, por meio de redes sociais como o tik tok, apenas ajudam a ofuscar nossa visão para o universo complexo das emoções humanas.
Como nos provoca Edgar Morin em um dos seus livros, “para onde vai o mundo”?
Osvaldo Alves de Jesus Júnior é amante das letras e das narrativas. É formado em Letras Vernáculas e Pedagogia, tendo pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínico-Institucional e Gênero e Sexualidade na Educação. Em 2018, publicou seu primeiro livro de crônicas, Fragmentos sinestésicos. Em 2019, lançou An…danças: facetas cotidianas, obra que contém prefácio da filósofa Marcia Tiburi. No final de 2021, publicará BNCC: que axé ela tem? Participa, constantemente, de antologias literárias.
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